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Saem últimos romances de Montalbán
"Erec e Enide" usa tema da literatura medieval e "Milênio" tem como protagonista o detetive Carvalho, sua maior criação
Detetive tem grande cultura gastronômica e em suas viagens faz comentários pessimistas sobre o atual estágio da civilização
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Vêm à luz no mercado
brasileiro os dois últimos romances do prolífero escritor espanhol Manuel
Vázquez Montalbán, morto aos
64 anos em 2003, em Bancoc,
numa conexão de um vôo vindo
da Austrália. O primeiro, "Erec e Enide", foi
publicado na Espanha em
2002, e este, "Milênio" -que,
de tão extenso, foi lançado lá
em dois volumes-, é póstumo.
"Milênio" é também a última
aventura do detetive Pepe Carvalho, que já exibiu seu talento
investigativo, sua sapiência
gastronômica e seu desencanto
com o mundo em romances como "O Quinteto de Buenos Aires" e "A Rosa de Alexandria".
No rol das habilidades do investigador incluem-se ainda o
conhecimento enciclopédico,
que o capacita a discursar sobre
eventos históricos, as artes em
geral, especialmente as literárias; sobre usos e costumes de
diversos povos.
Da Europa ao Oriente Médio,
das ex-repúblicas soviéticas ao
Afeganistão, da Índia a Bali
(onde ele testemunha o atentado à discoteca que matou quase
200 pessoas em 2002), passando pela América do Sul, inclusive pelo Brasil (onde se encontra com Frei Betto) até chegar à
África: se, conforme afirmou
Montalbán, Carvalho é um recurso por intermédio do qual
examina a realidade contemporânea, a viagem do herói é
um expediente que permite ao
autor traçar um balanço da globalização.
Diante disso, a trama policial
se esfumaça. Sim, Carvalho e
seu fiel escudeiro Biscuter são
perseguidos por capangas de
uma megacorporação, devido a
um assassinato ocorrido anos
antes, e por outros agentes,
mas essa intriga é rala.
É na viagem em si que os assuntos se descobrem, sendo o
principal o tema da morte. Salta à vista a quantidade de referentes funéreos visitados por
Carvalho e Biscuter: o cemitério genovês de Staglieno, o Mar
Morto, o Taj Mahal, os crematórios do Ganges etc.
Nesse contexto também se
ajusta o sentido da obsessão culinária do protagonista. A comida (ou a arte gastronômica) se
iguala à morte e à crueldade.
Assim, uma lauta refeição à base de caviar de beluga segue-se
à execução de um mafioso e
vem entremeada por comentários sobre o Holocausto. "A
criação é uma obra malfeita e
inapresentável, que não resiste
à menor análise ética porque se
baseia na necessidade de comer, transformando assim todo ser vivo em assassino direto
ou indireto", diz o detetive.
Não é à toa que o herói faz
questão de dar um pulo a Patmos, e não só porque foi lá que,
décadas antes, ele passara a
lua-de-mel. Foi também numa
gruta daquela ilha grega que o
apóstolo João escreveu o "devaneio catastrófico" do Apocalipse. Num mundo cindido entre globalizadores e globalizados, entre devoradores e devorados, o comentário escatológico e moralizante do evangelista
casa-se à visão negra do investigador sobre o estágio contemporâneo da civilização.
MILÊNIO
Autor: Manuel Vázquez Montalbán
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 59 (670 págs.)
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