São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 2007

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Saem últimos romances de Montalbán

"Erec e Enide" usa tema da literatura medieval e "Milênio" tem como protagonista o detetive Carvalho, sua maior criação

Detetive tem grande cultura gastronômica e em suas viagens faz comentários pessimistas sobre o atual estágio da civilização


MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Vêm à luz no mercado brasileiro os dois últimos romances do prolífero escritor espanhol Manuel Vázquez Montalbán, morto aos 64 anos em 2003, em Bancoc, numa conexão de um vôo vindo da Austrália. O primeiro, "Erec e Enide", foi publicado na Espanha em 2002, e este, "Milênio" -que, de tão extenso, foi lançado lá em dois volumes-, é póstumo.
"Milênio" é também a última aventura do detetive Pepe Carvalho, que já exibiu seu talento investigativo, sua sapiência gastronômica e seu desencanto com o mundo em romances como "O Quinteto de Buenos Aires" e "A Rosa de Alexandria".
No rol das habilidades do investigador incluem-se ainda o conhecimento enciclopédico, que o capacita a discursar sobre eventos históricos, as artes em geral, especialmente as literárias; sobre usos e costumes de diversos povos.
Da Europa ao Oriente Médio, das ex-repúblicas soviéticas ao Afeganistão, da Índia a Bali (onde ele testemunha o atentado à discoteca que matou quase 200 pessoas em 2002), passando pela América do Sul, inclusive pelo Brasil (onde se encontra com Frei Betto) até chegar à África: se, conforme afirmou Montalbán, Carvalho é um recurso por intermédio do qual examina a realidade contemporânea, a viagem do herói é um expediente que permite ao autor traçar um balanço da globalização.
Diante disso, a trama policial se esfumaça. Sim, Carvalho e seu fiel escudeiro Biscuter são perseguidos por capangas de uma megacorporação, devido a um assassinato ocorrido anos antes, e por outros agentes, mas essa intriga é rala.
É na viagem em si que os assuntos se descobrem, sendo o principal o tema da morte. Salta à vista a quantidade de referentes funéreos visitados por Carvalho e Biscuter: o cemitério genovês de Staglieno, o Mar Morto, o Taj Mahal, os crematórios do Ganges etc.
Nesse contexto também se ajusta o sentido da obsessão culinária do protagonista. A comida (ou a arte gastronômica) se iguala à morte e à crueldade.
Assim, uma lauta refeição à base de caviar de beluga segue-se à execução de um mafioso e vem entremeada por comentários sobre o Holocausto. "A criação é uma obra malfeita e inapresentável, que não resiste à menor análise ética porque se baseia na necessidade de comer, transformando assim todo ser vivo em assassino direto ou indireto", diz o detetive.
Não é à toa que o herói faz questão de dar um pulo a Patmos, e não só porque foi lá que, décadas antes, ele passara a lua-de-mel. Foi também numa gruta daquela ilha grega que o apóstolo João escreveu o "devaneio catastrófico" do Apocalipse. Num mundo cindido entre globalizadores e globalizados, entre devoradores e devorados, o comentário escatológico e moralizante do evangelista casa-se à visão negra do investigador sobre o estágio contemporâneo da civilização.


MILÊNIO     
Autor: Manuel Vázquez Montalbán
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 59 (670 págs.)


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