São Paulo, terça, 20 de janeiro de 1998.



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Assim falava o senhor Zaratrusta - 01999

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Eu pensei que aquele homenzinho de turbante era apenas um chofer de táxi do Paquistão. Havia muitos em NY fazendo aquele trabalho duro. Mas, enquanto me levava a Wall Street, ele começou a falar sobre a crise da Ásia, e suas palavras tinham os tons graves de uma oração profética:
"Tood morning, sir... Eu já li todos os jornais. Li o 'Financial Times', o 'Wall Street Journal', o 'The Economist' e, em verdade, vos digo: ninguém sabe nada! Por isso, lanço minha profecia sobre a crise do capitalismo. Vós achais que o mundo vai acabar com um grande 'bang', mas terminará num grande gemido contábil. Eu vi os fundamentos da economia mundial virando pó!"
"Outros profetas acham que é o 'fim da história'. Eu vos digo: é o começo. Eu vos digo que estão morrendo as últimas ilusões de controle. Ninguém controla as forças de mercado, e o mercado não regula mais coisa nenhuma, simplesmente porque não há mais mercado, somente um cassino de dinheiro, mercadorias virtuais se vendendo, como espíritos sem corpo. (No rádio, tocava uma melopéia hindu, aumentando o clima irreal ali na 2ª Avenida.)"
"Eu vi na TV o rosto do presidente do Banco Central, o Alan Greenspan: ele está com medo, meu senhor. Falava da deflação da China e da quebra do Japão e tremia. Ele já apela para abstrações como 'Humanidade', 'Verdade'..."
"Pela primeira vez, eu vejo banqueiros preocupados com sua própria crueza pragmática, achando 'muito duras' as medidas do FMI. Eles estão com medo de não poder repassar os custos da crise aos países 'emergentes' (como eram chamados até há pouco os 'subdesenvolvidos' -agora são 'insolvent'...), pois, se o devedor for à falência, o credor morre junto. O FMI quer impor regras anglo-saxônicas a séculos de patrimonialismo feudal em poucas semanas, e eu vos digo: não conseguirão."
"Eu vejo que os EUA e o G7 vão ter de pagar parte da conta do dinheiro que enfiaram goela abaixo dos bancos corruptos emergentes da Coréia e Indonésia. Sempre atribuíram as crises econômicas à sordidez política dos países periféricos, ao 'cronyism' (clientelismo) e à corrupção subdesenvolvida. Também acho. Mas isso não esgota o assunto. A grande crise é do próprio capital, que fechou seu ciclo produtivo."
"Eu vejo que pela primeira vez na história o liberalismo econômico vai ter de fazer uma autocrítica de sua crença de auto-regulação e coibir a especulação do dinheiro virtual que infesta o cassino global. Sem povo, você não governa; sem demanda, não há produção. (Eu pensei em perguntar a meu profeta sobre o Brasil, mas achei que era complicado demais.) O problema, meu senhor, é que o homem só entende as coisas depois que acontecem, 'a posteriori'."
"Alguns sabem das coisas. Aquele alemão, o Marx, previu tudo que ia acontecer. Só que ele achava que a luta de classes iria resolver tudo e que da grande 'shitstorm' sairia uma solução. A luta de classes continua, mas agora entre países, globalizada. A burguesia americana empresta grana à burguesia coreana, que gasta entre amigos, corrupções e obras loucas, e quem paga (depois que quebram) é o povo coreano, que vai passar fome para pagar o empréstimo que o FMI deu à burguesia coreana, com o dinheiro levantado do contribuinte americano."
"Só que essa luta de classes não levará a uma solução. Não há solução fora do capitalismo. Só dentro. Sem uma auto-reforma, o mercado morre. Por isso, em verdade eu vos digo: vem aí uma grande chuva negra! (Sua voz tremia como um cântico de agouro.) Com crise brava, não há democracia. Virá aí um novo período de nacionalismos, fundamentalismos. Vai surgir um antiamericanismo violento, fértil para criar ditaduras!"
"Veremos impérios fundamentalistas vivendo de rancor e fome, de orações e loucura. Os intelectuais do mundo inteiro... O senhor é intelectual?"
("Não, sou plantador de bananas no Brasil...")
"Ah, bem... porque os intelectuais e políticos do mundo inteiro não sabem mais o que fazer... Eles têm o diagnóstico do que está acontecendo, mas as soluções que eles propõem são do passado... Não conseguem pensar sem a idéia de 'revolução'."
"Não existem mais as grandes soluções, o mundo não pode ser entendido como uma 'grande narrativa', uma história completa com início e fim. (Por Shiva! Será ele um pós-estruturalista?) Não há mais heróis nem massas. E, se os revolucionários antigos quiserem atuar, eles terão de buscar uma nova práxis social, com uma perspectiva para além do capitalismo, lutando pelo abandono das crenças fetichistas do dinheiro."
"A única esperança é o capital se tocar que tem de desenvolver países para ter consumidores. Tem de transformar 'excluído' em 'freguês'. Vai ter de surgir um estranho neo-keynesianismo global, supra-estatal, para tentar criar um espaço social que permita 'emergir' mercados."
"Já consigo ver, meu senhor, esse estranho pseudo-humanismo raiando nas entrevistas dos economistas americanos, assustados que estão com o indeterminismo da economia virtual. Mas o problema é: como ajudar os periféricos a se desenvolver sem permitir que fiquem economicamente independentes. Aí é que está a questão: não deixar o doente morrer, mas não 'o curar' muito. A Ásia foi estimulada a crescer porque havia oferta de capital."
"Agora, acabou o milagre. Voltou tudo atrás, e eles têm de devolver a grana. Por isso, em verdade eu vos digo... coisas terríveis acontecerão. O Japão, em desespero, vai tirar os bilhões investidos nos EUA, e aí os 'yankees', sentados em sua máquina militar, vão quebrar. A China vai desvalorizar sua moeda para competir com os tigrinhos falidos que vão invadir o mercado americano com seus produtos baratos."
"A China é que vai ser o verdadeiro Titanic afundando com 2 bilhões de habitantes. Vem aí um novo mundo: uma economia sem sociedade engolindo os 'orgulhos' ocidentais. Em verdade vos digo, meu senhor: Deus morreu! Não há mais juízo final. O que vai haver agora -como diz aquele alemão profeta, o Robert Kurz- será o 'dia do pagamento'. As contas do mundo não fecham. O dia está chegando, senhor! 'Mil e mais! De dois mil não passarás!'."
Parou. Paguei, pálido, e vi seus olhos vazados de luz, sob o turbante. Ao sair, li o nome do paquistanês no vidro do carro: Zaratrusta - 01999.



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