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Assim falava o senhor Zaratrusta - 01999
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Eu pensei que aquele homenzinho de turbante era apenas
um chofer de táxi do Paquistão. Havia muitos em NY fazendo aquele trabalho duro.
Mas, enquanto me levava a
Wall Street, ele começou a falar sobre a crise da Ásia, e suas
palavras tinham os tons graves
de uma oração profética:
"Tood morning, sir... Eu já li
todos os jornais. Li o 'Financial Times', o 'Wall Street Journal', o 'The Economist' e, em
verdade, vos digo: ninguém sabe nada! Por isso, lanço minha
profecia sobre a crise do capitalismo. Vós achais que o
mundo vai acabar com um
grande 'bang', mas terminará
num grande gemido contábil.
Eu vi os fundamentos da economia mundial virando pó!"
"Outros profetas acham que
é o 'fim da história'. Eu vos digo: é o começo. Eu vos digo que
estão morrendo as últimas ilusões de controle. Ninguém controla as forças de mercado, e o
mercado não regula mais coisa
nenhuma, simplesmente porque não há mais mercado, somente um cassino de dinheiro,
mercadorias virtuais se vendendo, como espíritos sem corpo. (No rádio, tocava uma melopéia hindu, aumentando o
clima irreal ali na 2ª Avenida.)"
"Eu vi na TV o rosto do presidente do Banco Central, o
Alan Greenspan: ele está com
medo, meu senhor. Falava da
deflação da China e da quebra
do Japão e tremia. Ele já apela
para abstrações como 'Humanidade', 'Verdade'..."
"Pela primeira vez, eu vejo
banqueiros preocupados com
sua própria crueza pragmática, achando 'muito duras' as
medidas do FMI. Eles estão
com medo de não poder repassar os custos da crise aos países
'emergentes' (como eram chamados até há pouco os 'subdesenvolvidos' -agora são 'insolvent'...), pois, se o devedor
for à falência, o credor morre
junto. O FMI quer impor regras anglo-saxônicas a séculos
de patrimonialismo feudal em
poucas semanas, e eu vos digo:
não conseguirão."
"Eu vejo que os EUA e o G7
vão ter de pagar parte da conta do dinheiro que enfiaram
goela abaixo dos bancos corruptos emergentes da Coréia e
Indonésia. Sempre atribuíram
as crises econômicas à sordidez
política dos países periféricos,
ao 'cronyism' (clientelismo) e à
corrupção subdesenvolvida.
Também acho. Mas isso não
esgota o assunto. A grande crise é do próprio capital, que fechou seu ciclo produtivo."
"Eu vejo que pela primeira
vez na história o liberalismo
econômico vai ter de fazer
uma autocrítica de sua crença
de auto-regulação e coibir a
especulação do dinheiro virtual que infesta o cassino global. Sem povo, você não governa; sem demanda, não há produção. (Eu pensei em perguntar a meu profeta sobre o Brasil, mas achei que era complicado demais.) O problema,
meu senhor, é que o homem só
entende as coisas depois que
acontecem, 'a posteriori'."
"Alguns sabem das coisas.
Aquele alemão, o Marx, previu
tudo que ia acontecer. Só que
ele achava que a luta de classes
iria resolver tudo e que da
grande 'shitstorm' sairia uma
solução. A luta de classes continua, mas agora entre países,
globalizada. A burguesia americana empresta grana à burguesia coreana, que gasta entre amigos, corrupções e obras
loucas, e quem paga (depois
que quebram) é o povo coreano, que vai passar fome para
pagar o empréstimo que o FMI
deu à burguesia coreana, com
o dinheiro levantado do contribuinte americano."
"Só que essa luta de classes
não levará a uma solução. Não
há solução fora do capitalismo. Só dentro. Sem uma auto-reforma, o mercado morre.
Por isso, em verdade eu vos digo: vem aí uma grande chuva
negra! (Sua voz tremia como
um cântico de agouro.) Com
crise brava, não há democracia. Virá aí um novo período
de nacionalismos, fundamentalismos. Vai surgir um antiamericanismo violento, fértil
para criar ditaduras!"
"Veremos impérios fundamentalistas vivendo de rancor
e fome, de orações e loucura.
Os intelectuais do mundo inteiro... O senhor é intelectual?"
("Não, sou plantador de bananas no Brasil...")
"Ah, bem... porque os intelectuais e políticos do mundo
inteiro não sabem mais o que
fazer... Eles têm o diagnóstico
do que está acontecendo, mas
as soluções que eles propõem
são do passado... Não conseguem pensar sem a idéia de
'revolução'."
"Não existem mais as grandes soluções, o mundo não pode ser entendido como uma
'grande narrativa', uma história completa com início e fim.
(Por Shiva! Será ele um pós-estruturalista?) Não há mais heróis nem massas. E, se os revolucionários antigos quiserem
atuar, eles terão de buscar
uma nova práxis social, com
uma perspectiva para além do
capitalismo, lutando pelo
abandono das crenças fetichistas do dinheiro."
"A única esperança é o capital se tocar que tem de desenvolver países para ter consumidores. Tem de transformar 'excluído' em 'freguês'. Vai ter de
surgir um estranho neo-keynesianismo global, supra-estatal,
para tentar criar um espaço
social que permita 'emergir'
mercados."
"Já consigo ver, meu senhor,
esse estranho pseudo-humanismo raiando nas entrevistas
dos economistas americanos,
assustados que estão com o indeterminismo da economia
virtual. Mas o problema é: como ajudar os periféricos a se
desenvolver sem permitir que
fiquem economicamente independentes. Aí é que está a
questão: não deixar o doente
morrer, mas não 'o curar' muito. A Ásia foi estimulada a
crescer porque havia oferta de
capital."
"Agora, acabou o milagre.
Voltou tudo atrás, e eles têm
de devolver a grana. Por isso,
em verdade eu vos digo... coisas terríveis acontecerão. O Japão, em desespero, vai tirar os
bilhões investidos nos EUA, e
aí os 'yankees', sentados em
sua máquina militar, vão quebrar. A China vai desvalorizar
sua moeda para competir com
os tigrinhos falidos que vão invadir o mercado americano
com seus produtos baratos."
"A China é que vai ser o verdadeiro Titanic afundando
com 2 bilhões de habitantes.
Vem aí um novo mundo: uma
economia sem sociedade engolindo os 'orgulhos' ocidentais.
Em verdade vos digo, meu senhor: Deus morreu! Não há
mais juízo final. O que vai haver agora -como diz aquele
alemão profeta, o Robert
Kurz- será o 'dia do pagamento'. As contas do mundo
não fecham. O dia está chegando, senhor! 'Mil e mais! De
dois mil não passarás!'."
Parou. Paguei, pálido, e vi
seus olhos vazados de luz, sob
o turbante. Ao sair, li o nome
do paquistanês no vidro do
carro: Zaratrusta - 01999.
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