São Paulo, terça, 20 de janeiro de 1998.



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A VOZ DO SAMBA
Para Zé Ketti, Carnaval rima com roubo

Compositor, de 76 anos, vivendo modestamente no Rio, revela o pouco valor que o país dá aos formadores de sua cultura


SÉRGIO MALBERGIER
enviado especial ao Rio

O Carnaval está chegando e Zé Ketti sabe que será roubado de novo. "Máscara Negra", o seu maior sucesso, lhe rendeu no ano passado apenas cerca de R$ 6 mil pelas execuções na época da festa.
Se o hino carnavalesco foi executado pelo menos uma vez nos 1.075 bailes de Carnaval computados em 97 pelo Ecad (órgão que repassa os direitos autorais aos compositores) -a R$ 28,86 por execução-, o montante passaria para R$ 31 mil, a ser dividido com herdeiros do co-autor, Hildebrando Pereira.
É por essas que o compositor, aos 76 anos, nunca saiu do Brasil, não tem carro e vive modestamente num apartamento apertado em Inhaúma, zona norte do Rio.
"Ninguém nunca está satisfeito com o tal do direito autoral", ironiza Ketti, sem perder a verve poética. Ele ainda está meio cambaleante, nesta manhã de domingo, após ser acordado pela reportagem às 11h -horário acertado para a entrevista.
Ketti foi dormir às 4h por causa de uma festa em homenagem ao compositor Lamartine Babo (1904-63). No café da manhã, ele manda pão com margarina e dois ovos, apesar de ter sofrido uma cirurgia no coração no ano passado.
"Chega o Carnaval e é automático. Quem não toca 'Máscara Negra'?", diz e depois cantarola "Ó quanto riso, ó quanta alegria...".
"Compositores e pessoas como o Zé Ketti deveriam estar com a vida ganha", diz Paulinho da Viola, apelidado e lançado por Ketti. "Ele é um dos maiores compositores. Seu fraseado, sua melodia, é um estilo só dele."
Ketti, nascido José Flores de Jesus, é visto pelos historiadores do samba como uma das primeiras conexões entre os "compositores do morro", como Cartola, e os intelectuais da zona sul carioca.
Ele trabalhou como ator, assistente de câmera e compôs a música-tema "A Voz do Morro" ("Eu sou o samba, a voz do morro..."), do filme "Rio 40 Graus", de Nelson Pereira dos Santos (1955).
Em 1964, estreou no show "Opinião", marco do teatro engajado, no papel de um malandro de morro. Contracenava com Nara Leão, depois substituída por Maria Bethânia, e o compositor maranhense João do Vale, no papel de um retirante nordestino. João do Vale morreu quase miserável em 96.
Além de temas sociais politizados, Zé Ketti trouxe também mais melodia ao batuque do samba. "Ele é um compositor de samba muito importante. Tem uma melodia incrível", diz o historiador e cronista do samba Sérgio Cabral.
O condomínio em que Zé Ketti mora foi construído pelo sindicato dos músicos na década de 60 para garantir um teto aos quase sempre mal pagos profissionais de música. Dona Ivone Lara, Elza Soares, Ângela Maria e Toni Tornado são alguns dos que passaram por lá.
Três dos seis filhos de Ketti moram no condomínio e cuidam do pai com dedicação. Ele vive com o dinheiro da aposentadoria -trabalhou como escriturário do INPS- e com os repasses do Ecad (de R$ 1.200 a R$ 2.000 por mês, segundo os filhos).
Não é pobre para os padrões dos miseráveis da MPB, mas tem direito a muito mais.



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