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ARNALDO JABOR
"O Tigre e o Dragão" é um abacaxi "made in Taiwan"
Não. "O Tigre e o Dragão"
não é a estória de ACM contra Jader. Justamente enojado
dessa refrega, fui ver o filme de
Ang Lee, na esperança de encontrar consolo poético para as feiúras do mundo; eu queria aventuras, briga de espada, eu que sempre amei filme B de ficção científica, velhos faroestes e comédias
"screwball". Como disse Paulo
Emílio, nosso maior crítico de cinema, "vai-se ao cinema como se
vai ao bordel -em busca de ilusão".
Pois fui em busca de ilusão e saí
mais desamparado que antes,
pois nem no escurinho se consegue esquecer os horrores atuais,
porque até ali no filme se estampam todas as deformações do
shopping global que é nosso destino de mercado.
Por isso, na qualidade de cineasta em recesso, tenho a missão
(impossível) de denunciar arte
falsificada, como já fiz com "A Vida É Bela", para ódio de muitos.
Sempre que esculhambo um filme
sou alvo de raivas espumantes.
Nada mais insuportável do que
alguém criticar nosso gosto secreto. Mas, vamos lá, "meu destino é sofrer", como diria um título de
filme B, preto-e-branco.
"O Tigre e o Dragão" é um tremendo abacaxi. E o mais impressionante é que crítica e público
não vêem isso e amam o filme
(exceto na China -e não por
acaso), cobrindo-o de Globos de
Ouro, vitória em Cannes, candidato a dez Oscar. Não é apenas
um honesto sucesso comercial, como qualquer legítimo John Woo.
Não. É considerado um filme de
arte, que consegue casar o grande
público com a "profundidade" de
"imagens lindas" e da secular sapiência chinesa. Daí a certeza que me atravessou ao sair da sessão:
não foi o cinema que piorou;
quem piorou foi o público.
A oferta infinita de estímulos
audiovisuais está matando as referências de qualidade que tínhamos antes. Sumiram os balizamentos de crítica, sumiu a lembrança da história do cinema, sumiram critérios construídos nos primeiros 70 anos de produção de
filmes, pois acho que esse bode
preto se apresentou mesmo nos
últimos 20 anos. A verdade é que,
em nome de uma "liberdade" pós-moderna, triunfou a grande liberdade da ignorância, com a vitória
total dos critérios de "box office".
Antes, o sonho dos autores era
fazer filmes bons, que fossem também comerciais; hoje, querem filmes bem óbvios, só de mercado,
mas tentam enfiar neles um pouquinho de "arte" para enganar o
público e embelezar ("embezzle")
os críticos. A arte virou um adorno para enfeitar banalidades. Ai, que saudade dos grandes filmes
japoneses (que Ang Lee dilui descaradamente), que saudade de
Mizoguchi, Kobayashi, de Kurosawa, dos "Sete Samurais" e mesmo dos produtos ocidentalizados
que esse nos mandou, como "Yojimbo" ou "Sanjuro", que saudade dos honestos "kung fus" de
Hong Kong, do poético Bruce Lee
lutando de peito nu, desamparado em sua fúria sexy, herói de
uma guerra juvenil misteriosa.
"O Tigre e o Dragão", não. Esse
filme é uma receita de comida
asiática misturada com fast food.
Assim: junte-se a mística da luta
marcial, dos "katás" voltejantes,
das porradas bailarinas com um
pouco de sabedoria oriental e beleza visual.
Por beleza, entendam-se paisagens glamourosas de desertos e
florestas, planos gerais ao poente
com filtro "fog" e, por sabedoria,
alinhem-se meia dúzia de lugares-comuns "zen pop", declamados por guerreiros sofridos e "profundos", tipo: "Só a determinação
leva à vitória" ou "o desejo tem de
ser contido para existir", diálogos
que lembram aquelas mensagens
que vêm dentro de biscoitinhos de
restaurante chinês.
Adicione-se um pouco de amor
impossível entre guerreiro e guerreira, um punhado de cenas western em Monumental Valleys da
Manchúria, brigas em bares típicos de "Johnny Guitar" ou "Shane", uma pitadinha de cenas de
sexo com o doce bárbaro domando a feroz mocinha "kung fu",
música, ruídos em dolby stereo e...
aí o chantilly: os efeitos especiais.
Como o filme "Matrix" fez muito sucesso com seus vôos e ricochetes de balas, Ang Lee, o diluidor
de Taiwan, resolveu orientalizar
"Matrix". "Vou mais longe!",
pensou. "Minhas personagens lutam tanto que voam... voam... como pássaros líricos, como as cegonhas da Mongólia, como urubus kitsch, agregando um valor oriental aos golpes guerreiros, dando
um toque místico à bruta violência ocidental..."
Ang Lee também pensou:
"Meus guerreiros serão mulheres
e, com isso, cooptarei o público feminista em sua fome fálica". E o
resultado é um show de "milagres" marciais, para "espiritualizar" a dureza tecnológica dos
efeitos especiais. Os efeitos especiais corrompem a invenção poética pelo "pode tudo" de suas
1.001 utilidades.
Ai, que saudade dos honestos
vôos do Superman, de Batman,
aqui plagiados por metáforas flutuantes. A esperteza desse filme é
a mesma de "A Vida É Bela": fazer um apanhado "pela rama"
dos mitos chineses (ou italianos),
transformar 5.000 anos de arte e
história em magia de computador e extasiar os bobos ocidentais.
O filme engana como sendo imaginoso, livre, poético. Mas a imaginação não é a fuga do possível; é
a subversão dele.
As lutas são boas? Sim, claro,
com anos de aperfeiçoamento em
Hong Kong, mas elas surgem do
nada. As personagens ralas e ridículas desencadeiam ódios mortais sem motivo algum, virando
um balé sem fim, golpes que não
ferem e maravilham os ressentidos no escuro, que adorariam encher os outros de porrada. Como
nos filmes pornô, onde tudo é pretexto para voltar para a cama,
nesse filme os diálogos óbvios cessam rapidamente, para vermos
mais quebra-paus.
Alguns se surpreenderam que
um filme chinês falado em mandarim receba tantos prêmios.
Mas não é um filme chinês; é um
filme de Taiwan... O Oscar vai
vendê-lo como um sinal da abertura da América global às outras
culturas. Mas é o contrário; trata-se da submissão de outras culturas às regras de Hollywood, ao
mundinho imaginário dos americanos.
Ang Lee não é chinês.
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