São Paulo, terça-feira, 20 de fevereiro de 2001

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ARNALDO JABOR

"O Tigre e o Dragão" é um abacaxi "made in Taiwan"

Não. "O Tigre e o Dragão" não é a estória de ACM contra Jader. Justamente enojado dessa refrega, fui ver o filme de Ang Lee, na esperança de encontrar consolo poético para as feiúras do mundo; eu queria aventuras, briga de espada, eu que sempre amei filme B de ficção científica, velhos faroestes e comédias "screwball". Como disse Paulo Emílio, nosso maior crítico de cinema, "vai-se ao cinema como se vai ao bordel -em busca de ilusão".
Pois fui em busca de ilusão e saí mais desamparado que antes, pois nem no escurinho se consegue esquecer os horrores atuais, porque até ali no filme se estampam todas as deformações do shopping global que é nosso destino de mercado.
Por isso, na qualidade de cineasta em recesso, tenho a missão (impossível) de denunciar arte falsificada, como já fiz com "A Vida É Bela", para ódio de muitos. Sempre que esculhambo um filme sou alvo de raivas espumantes. Nada mais insuportável do que alguém criticar nosso gosto secreto. Mas, vamos lá, "meu destino é sofrer", como diria um título de filme B, preto-e-branco.
"O Tigre e o Dragão" é um tremendo abacaxi. E o mais impressionante é que crítica e público não vêem isso e amam o filme (exceto na China -e não por acaso), cobrindo-o de Globos de Ouro, vitória em Cannes, candidato a dez Oscar. Não é apenas um honesto sucesso comercial, como qualquer legítimo John Woo. Não. É considerado um filme de arte, que consegue casar o grande público com a "profundidade" de "imagens lindas" e da secular sapiência chinesa. Daí a certeza que me atravessou ao sair da sessão: não foi o cinema que piorou; quem piorou foi o público.
A oferta infinita de estímulos audiovisuais está matando as referências de qualidade que tínhamos antes. Sumiram os balizamentos de crítica, sumiu a lembrança da história do cinema, sumiram critérios construídos nos primeiros 70 anos de produção de filmes, pois acho que esse bode preto se apresentou mesmo nos últimos 20 anos. A verdade é que, em nome de uma "liberdade" pós-moderna, triunfou a grande liberdade da ignorância, com a vitória total dos critérios de "box office".
Antes, o sonho dos autores era fazer filmes bons, que fossem também comerciais; hoje, querem filmes bem óbvios, só de mercado, mas tentam enfiar neles um pouquinho de "arte" para enganar o público e embelezar ("embezzle") os críticos. A arte virou um adorno para enfeitar banalidades. Ai, que saudade dos grandes filmes japoneses (que Ang Lee dilui descaradamente), que saudade de Mizoguchi, Kobayashi, de Kurosawa, dos "Sete Samurais" e mesmo dos produtos ocidentalizados que esse nos mandou, como "Yojimbo" ou "Sanjuro", que saudade dos honestos "kung fus" de Hong Kong, do poético Bruce Lee lutando de peito nu, desamparado em sua fúria sexy, herói de uma guerra juvenil misteriosa.
"O Tigre e o Dragão", não. Esse filme é uma receita de comida asiática misturada com fast food. Assim: junte-se a mística da luta marcial, dos "katás" voltejantes, das porradas bailarinas com um pouco de sabedoria oriental e beleza visual.
Por beleza, entendam-se paisagens glamourosas de desertos e florestas, planos gerais ao poente com filtro "fog" e, por sabedoria, alinhem-se meia dúzia de lugares-comuns "zen pop", declamados por guerreiros sofridos e "profundos", tipo: "Só a determinação leva à vitória" ou "o desejo tem de ser contido para existir", diálogos que lembram aquelas mensagens que vêm dentro de biscoitinhos de restaurante chinês.
Adicione-se um pouco de amor impossível entre guerreiro e guerreira, um punhado de cenas western em Monumental Valleys da Manchúria, brigas em bares típicos de "Johnny Guitar" ou "Shane", uma pitadinha de cenas de sexo com o doce bárbaro domando a feroz mocinha "kung fu", música, ruídos em dolby stereo e... aí o chantilly: os efeitos especiais.
Como o filme "Matrix" fez muito sucesso com seus vôos e ricochetes de balas, Ang Lee, o diluidor de Taiwan, resolveu orientalizar "Matrix". "Vou mais longe!", pensou. "Minhas personagens lutam tanto que voam... voam... como pássaros líricos, como as cegonhas da Mongólia, como urubus kitsch, agregando um valor oriental aos golpes guerreiros, dando um toque místico à bruta violência ocidental..."
Ang Lee também pensou: "Meus guerreiros serão mulheres e, com isso, cooptarei o público feminista em sua fome fálica". E o resultado é um show de "milagres" marciais, para "espiritualizar" a dureza tecnológica dos efeitos especiais. Os efeitos especiais corrompem a invenção poética pelo "pode tudo" de suas 1.001 utilidades.
Ai, que saudade dos honestos vôos do Superman, de Batman, aqui plagiados por metáforas flutuantes. A esperteza desse filme é a mesma de "A Vida É Bela": fazer um apanhado "pela rama" dos mitos chineses (ou italianos), transformar 5.000 anos de arte e história em magia de computador e extasiar os bobos ocidentais. O filme engana como sendo imaginoso, livre, poético. Mas a imaginação não é a fuga do possível; é a subversão dele.
As lutas são boas? Sim, claro, com anos de aperfeiçoamento em Hong Kong, mas elas surgem do nada. As personagens ralas e ridículas desencadeiam ódios mortais sem motivo algum, virando um balé sem fim, golpes que não ferem e maravilham os ressentidos no escuro, que adorariam encher os outros de porrada. Como nos filmes pornô, onde tudo é pretexto para voltar para a cama, nesse filme os diálogos óbvios cessam rapidamente, para vermos mais quebra-paus.
Alguns se surpreenderam que um filme chinês falado em mandarim receba tantos prêmios. Mas não é um filme chinês; é um filme de Taiwan... O Oscar vai vendê-lo como um sinal da abertura da América global às outras culturas. Mas é o contrário; trata-se da submissão de outras culturas às regras de Hollywood, ao mundinho imaginário dos americanos.
Ang Lee não é chinês.



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