São Paulo, quarta-feira, 20 de fevereiro de 2002

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MARCELO COELHO

Redes provisórias de experimentação libertária

Já se falou muito do fracasso do socialismo real, do fim das utopias etc. Esse discurso ficou velho também. Tem, por vezes, uma dose de conformismo inocultável. É preciso fazer muita força para reduzir as manifestações de Porto Alegre a um puro folclore jurássico; e, depois da crise argentina, é preciso muito fundamentalismo fanático para acreditar no que dizem os seguidores do FMI.
Se o clima é de contestação, vem a calhar um lançamento recente da editora Conrad. Trata-se de um pequeno livro (88 páginas) chamado "TAZ- Zona Autônoma Temporária". Escrito em 1990, esse "clássico da subversão contemporânea" -é o que diz a quarta capa- inaugura uma série de publicações que atende pelo sugestivo nome de Coleção Baderna.
Do autor, Hakim Bey, não há foto nem informações biográficas disponíveis. Lendas a seu respeito circulam pela internet -e há uma espécie de estratégia de mitomania no próprio livro que ele escreveu.
Da mitomania falo depois. O texto é interessantíssimo e, por muito motivos, inquietante. O autor parte de uma constatação clássica, aceita tanto pelos neoliberais quanto pelos anarquistas: as revoluções que "deram certo" terminaram todas em tirania e terror.
"Para nós", diz Hakim Bey, o levante, a insurreição, representa "uma possibilidade muito mais interessante do ponto de vista de uma psicologia da libertação do que as "bem-sucedidas" revoluções burguesas, comunistas, fascistas etc." A novidade é que o livro não defende o sonho anarquista de uma sociedade sem Estado, construída em bases permanentes: "nossa situação histórica não é propícia para tarefa tão vasta".
Bey propõe levantes temporários, momentos de intensidade contestatária: nisso consistiria a criação das "Zonas Autônomas Temporárias" -ou "TAZ", a sigla segundo o original inglês.
A proposta parece ao mesmo tempo visionária e insuficiente -e talvez o seja. Mas acompanhemos um pouco mais a argumentação do autor. Ao contrário do que se possa pensar, essas Zonas Autônomas Temporárias não são uma coisa do arco-da-velha. Já existem e são até certo ponto corriqueiras. Um "happening", uma passeata, um acampamento de sem-terra, uma comunidade de "hackers" na internet ou um Fórum Social seriam exemplos possíveis (e de desigual dimensão) desses momentos de autonomia, dessas redes provisórias de experimentação libertária.
Três idéias se misturam no conceito das TAZ: a idéia de uma organização horizontal (o modelo de uma sociedade aberta, de um "bando", como diz o autor), a idéia da festa (o modelo da ruptura carnavalesca, do dionisismo, da confraternização) e a noção de "nomadismo" (descentralização, desenraizamento, transitoriedade, acampamento).
Sem dúvida, não há nessa tática rebelde uma ambição de mudar definitivamente o mundo nem sequer, talvez, de reformá-lo aos poucos. Mas é inegável que Hakim Bey dá nome e significado a todo um tipo de movimentação social que viria a surgir como resposta ao sufocante consenso neoliberal.
A relativa modéstia dessa subversão é contrabalançada, entretanto, por largos vôos imaginativos -nisso está o que chamei de tática mitômana do autor. As primeiras Zonas Autônomas Temporárias foram criadas pelos piratas do século 18, diz Hakim Bey. Portos clandestinos serviam, na época dos bucaneiros, de zonas livres da lei.
Histórias de colonizadores brancos do Novo Mundo, subitamente desaparecidos, que se deixaram absorver pelos índios; "quakers patifes", "mouros de Delaware", descendentes afro-islâmicos polígamos no Estado de Ohio, fundadores de comunidade em Madagáscar e mesmo o breve governo do poeta Gabriele d'Annunzio (1863-1938) na "República do Fiume" são alguns dos exemplos idealizados por Hakim Bey.
O que ele diz sobre d'Annunzio é bem ilustrativo. Depois da primeira guerra, o poeta decidiu conquistar a cidade de Fiume, que tinha ficado com a Iugoslávia. Juntou um bando de aventureiros e teve êxito em sua incursão. O Estado italiano não levou a sério a iniciativa. O poeta passou então a governar a cidade. "Toda manhã, do seu balcão, d'Annunzio lia poesia e manifestos; toda noite havia um concerto, seguido por fogos de artifício. Nisso se resumia toda a atividade do governo." O dinheiro vinha de saques aos navios que passavam por ali. Dezoito meses depois, quando a frota italiana apareceu e "lançou alguns projéteis contra o palácio municipal, ninguém tinha energia para resistir".
Menos do que um modelo de mudança social, claro, Hakim Bey propõe um modelo de ativismo; ele mesmo pergunta se a TAZ não estaria voltada unicamente "ao beco sem saída econômico do parasitismo pirata". Certamente, é um modelo de rebeldia em que o foco não mais está (como era o caso da esquerda clássica) na produção dos bens, e sim no âmbito do consumo, a partir da experiência da superabundância das sociedades desenvolvidas.
Mas, se pensarmos que o poder político e econômico se sustenta, hoje em dia, em bases até certo ponto imaginárias, "imateriais" -da indústria do entretenimento aos programas de software, da publicidade à especulação em torno de riquezas puramente contábeis-, as idéias de Hakim Bey não são tão delirantes assim. Pelo menos, se há delírio do seu lado, nada indica que em Washington ou em Davos o realismo seja tão grande assim.



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