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MARCELO COELHO
Redes provisórias de experimentação libertária
Já se falou muito do fracasso
do socialismo real, do fim das
utopias etc. Esse discurso ficou velho também. Tem, por vezes, uma
dose de conformismo inocultável.
É preciso fazer muita força para
reduzir as manifestações de Porto
Alegre a um puro folclore jurássico; e, depois da crise argentina, é
preciso muito fundamentalismo
fanático para acreditar no que dizem os seguidores do FMI.
Se o clima é de contestação, vem
a calhar um lançamento recente
da editora Conrad. Trata-se de
um pequeno livro (88 páginas)
chamado "TAZ- Zona Autônoma
Temporária". Escrito em 1990, esse "clássico da subversão contemporânea" -é o que diz a quarta
capa- inaugura uma série de
publicações que atende pelo sugestivo nome de Coleção Baderna.
Do autor, Hakim Bey, não há
foto nem informações biográficas
disponíveis. Lendas a seu respeito
circulam pela internet -e há
uma espécie de estratégia de mitomania no próprio livro que ele
escreveu.
Da mitomania falo depois. O
texto é interessantíssimo e, por
muito motivos, inquietante. O
autor parte de uma constatação
clássica, aceita tanto pelos neoliberais quanto pelos anarquistas:
as revoluções que "deram certo"
terminaram todas em tirania e
terror.
"Para nós", diz Hakim Bey, o levante, a insurreição, representa
"uma possibilidade muito mais
interessante do ponto de vista de
uma psicologia da libertação do
que as "bem-sucedidas" revoluções
burguesas, comunistas, fascistas
etc." A novidade é que o livro não
defende o sonho anarquista de
uma sociedade sem Estado, construída em bases permanentes:
"nossa situação histórica não é
propícia para tarefa tão vasta".
Bey propõe levantes temporários, momentos de intensidade
contestatária: nisso consistiria a
criação das "Zonas Autônomas
Temporárias" -ou "TAZ", a sigla segundo o original inglês.
A proposta parece ao mesmo
tempo visionária e insuficiente
-e talvez o seja. Mas acompanhemos um pouco mais a argumentação do autor. Ao contrário
do que se possa pensar, essas Zonas Autônomas Temporárias não
são uma coisa do arco-da-velha.
Já existem e são até certo ponto
corriqueiras. Um "happening",
uma passeata, um acampamento
de sem-terra, uma comunidade
de "hackers" na internet ou um
Fórum Social seriam exemplos
possíveis (e de desigual dimensão) desses momentos de autonomia, dessas redes provisórias de
experimentação libertária.
Três idéias se misturam no conceito das TAZ: a idéia de uma organização horizontal (o modelo
de uma sociedade aberta, de um
"bando", como diz o autor), a
idéia da festa (o modelo da ruptura carnavalesca, do dionisismo,
da confraternização) e a noção de
"nomadismo" (descentralização,
desenraizamento, transitoriedade, acampamento).
Sem dúvida, não há nessa tática
rebelde uma ambição de mudar
definitivamente o mundo nem sequer, talvez, de reformá-lo aos
poucos. Mas é inegável que Hakim Bey dá nome e significado a
todo um tipo de movimentação
social que viria a surgir como resposta ao sufocante consenso neoliberal.
A relativa modéstia dessa subversão é contrabalançada, entretanto, por largos vôos imaginativos -nisso está o que chamei de
tática mitômana do autor. As primeiras Zonas Autônomas Temporárias foram criadas pelos piratas do século 18, diz Hakim Bey.
Portos clandestinos serviam, na
época dos bucaneiros, de zonas livres da lei.
Histórias de colonizadores
brancos do Novo Mundo, subitamente desaparecidos, que se deixaram absorver pelos índios;
"quakers patifes", "mouros de
Delaware", descendentes afro-islâmicos polígamos no Estado de
Ohio, fundadores de comunidade
em Madagáscar e mesmo o breve
governo do poeta Gabriele d'Annunzio (1863-1938) na "República do Fiume" são alguns dos
exemplos idealizados por Hakim
Bey.
O que ele diz sobre d'Annunzio
é bem ilustrativo. Depois da primeira guerra, o poeta decidiu
conquistar a cidade de Fiume,
que tinha ficado com a Iugoslávia. Juntou um bando de aventureiros e teve êxito em sua incursão. O Estado italiano não levou a
sério a iniciativa. O poeta passou
então a governar a cidade. "Toda
manhã, do seu balcão, d'Annunzio lia poesia e manifestos; toda
noite havia um concerto, seguido
por fogos de artifício. Nisso se resumia toda a atividade do governo." O dinheiro vinha de saques
aos navios que passavam por ali.
Dezoito meses depois, quando a
frota italiana apareceu e "lançou
alguns projéteis contra o palácio
municipal, ninguém tinha energia para resistir".
Menos do que um modelo de
mudança social, claro, Hakim
Bey propõe um modelo de ativismo; ele mesmo pergunta se a TAZ
não estaria voltada unicamente
"ao beco sem saída econômico do
parasitismo pirata". Certamente,
é um modelo de rebeldia em que o
foco não mais está (como era o
caso da esquerda clássica) na produção dos bens, e sim no âmbito
do consumo, a partir da experiência da superabundância das sociedades desenvolvidas.
Mas, se pensarmos que o poder
político e econômico se sustenta,
hoje em dia, em bases até certo
ponto imaginárias, "imateriais"
-da indústria do entretenimento aos programas de software, da
publicidade à especulação em torno de riquezas puramente contábeis-, as idéias de Hakim Bey
não são tão delirantes assim. Pelo
menos, se há delírio do seu lado,
nada indica que em Washington
ou em Davos o realismo seja tão
grande assim.
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