São Paulo, Sábado, 20 de Fevereiro de 1999
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CINEMA
Cronenberg e Wenders exibem obras marcantes

LEON CAKOFF
em Berlim

Apesar de uma impressão sempre igual de que saímos de Berlim sem uma nova explosão criativa, o festival chega ao fim com uma boa coleção de imagens e obras marcantes para excitar os cinéfilos no ano que se inicia. Vamos a elas:

"Mifune - Dogma 3". O terceiro longa dinamarquês que diz obedecer a uma série de preceitos pela purificação do cinema. "Festa de Família" e "Os Idiotas" foram os dois primeiros. Um dos mandamentos do manifesto dogmático é que o diretor não seja creditado. Mas como evitar dizer que "Mifune" é dirigido por Soren Kragh-Jacobsen? A sensação que o terceiro manifesto provoca é que essa grande jogada de marketing dissemina uma nova ordem calvinista. O calvinismo cinematográfico que quer se bater agora também contra os prazeres visuais e emocionais que o cinema passa. Se não, por que essa frente contra as melhores conquistas do cinema que estão numa boa iluminação, nas boas lentes e num bom som? Fora isso, construir o frágil roteiro de "Mifune" com uma prostituta de luxo e um débil mental soa tão artificial quanto um filme com Bruce Willis.

"Karnaval", do estreante francês Thomas Vincent. Com a doce figura de Sylvie Testud como mulher de província às voltas com o marido violento e um amante árabe em pleno carnaval de abusos etílicos. Candidata natural a melhor atriz.

"The Last Days", do estreante americano James Moll. A produção de Steven Spielberg para manter vivas as memórias do Holocausto. A narração vem de cinco personagens de origem húngara que escaparam dos campos de concentração nazistas. Candidato ao Oscar de melhor documentário.

"Entre las Piernas", do espanhol Manuel Gómez Pereira. Um ótimo título. Trata de viciados em sexo que buscam cura numa associação. É onde os incuráveis Victoria Abril e Carmelo Gómez se conhecem e criam o clima de "film noir".

"Shakespeare Apaixonado", do inglês John Madden, é uma típica emoção pré-fabricada para fazer chover Oscar na sua horta. Melhor dizendo, na horta absolutista da Miramax. É apenas um filme bonitinho para fazer suspirar corações adolescentes.

"Three Seasons", do estreante americano Tony Bui, é a prova maior de que o Sundance Festival é mais um blefe do que realmente um estímulo para novos talentos. O filme passado no Vietnã é enfadonho, pesado, amador.

"La Niña de Tus Ojos", do espanhol Fernando Trueba, visita os estúdios alemães da UFA no nazismo. Atores espanhóis são convidados para rodar uma co-produção em Berlim. Vira chanchada.

"Ça Commence Aujourd'Hui", do mestre Bertrand Tavernier, aborda o desemprego na França por meio das aflições de crianças e pais de uma escola maternal. Uma obra humanista rara neste festival.

"eXistenZ", do canadense David Cronenberg, que cria, com mais uma obra desconcertante, uma nova via sexual: um buraco repugnante, na base da coluna cervical, que se alimenta de nervos de pequenos monstros extraídos por uma indústria de videogames. O clima é orwelliano, as premissas, kafkianas. O jogo orgânico nunca termina. À parte os prazeres e horrores do jogo, Cronenberg cita Salman Rushdie como seu inspirador. E Jennifer Jason Leigh vive a criadora de jogos invasores do sistema nervoso, perseguida e condenada à morte. O melhor de Cronenberg.

"Keiho", do japonês Yoshimitsu Morita. Também um dos melhores do festival. Mas difícil, para ser visto e revisto. Tem o julgamento de um presumível assassino. Mais do que isso, oferece uma radiografia profunda da sociedade japonesa. O julgamento tem revelações estonteantes sobre os crimes monstruosos da narrativa. Candidato a cult e ao Urso de Ouro.

"Simon Magus", do estreante inglês Ben Hopkins, foi uma agradável surpresa. A notícia da expansão ferroviária motiva um jovem idealista judeu a arquitetar uma estação, um mercado aos pés da sua pobre aldeia. Cabe ao louco rejeitado da aldeia aproximar o resto do mundo a esse universo ortodoxo: o da cobiça, do amor, da literatura, dos poetas e da razão.

"Buena Vista Social Club", de Wim Wenders, resgata a triste resistência cubana por sua música e de seus veteranos mestres. Graças à pesquisa musical do guitarrista Ry Cooder, para um disco que também leva o nome do filme, figuras legendárias e esquecidas como o dos cantores Omara Portuondo e Comapy Segungo voltam a ser ovacionados. Além do registro das gravações, o documentário oferece os melhores momentos dos espetáculos do grupo em Amsterdã e Nova York. Imperdível.


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