São Paulo, Sábado, 20 de Fevereiro de 1999
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Político fará papel de chefe da tribo, diz sociólogo

JUREMIR MACHADO DA SILVA
especial para a Folha

Derradeiro utilizador do termo pós-modernidade como instrumento de interpretação da cultura contemporânea, o sociólogo Michel Maffesoli é ao mesmo tempo um pioneiro e um teórico solitário.
Depois de explorar, contra todos os defensores do racionalismo moderno, as vertigens de categorias como tribalismo, dionisíaco, sinceridades sucessivas e nomadismo, o autor de "A Contemplação do Mundo" (Artes & Ofícios, 1994) e de "A Transfiguração do Político - A Tribalização do Mundo" (Sulina, 1997) vê as suas ferramentas conceituais serem apropriadas por seus adversários.
Nesta entrevista à Folha, em Paris, Maffesoli revisita o seu percurso intelectual e reflete sobre os imaginários deste final de milênio.

Folha - O sr. reflete sobre temas desconsiderados pela sociologia tradicional. Muitos desses termos foram incorporados por seus adversários.
Michel Maffesoli -
- Já no fim dos anos 60, enfrentei a conspiração do silêncio num tempo em que predominavam os dogmas positivistas do marxismo, do estruturalismo, do althusserismo. As minhas idéias chocaram os intelectuais de direita e de esquerda na medida em que contestavam a visão produtivista. Refletia-se com base em categorias que já não correspondiam aos fatos sociais. Só agora, nos anos 90, os sociólogos perceberam realmente o valor de termos como nomadismo, tribalismo, imaginário, dionisíaco etc.
Folha - Para o sr., o Brasil seria um laboratório da pós-modernidade. Por quê?
Maffesoli -
Essa idéia me ocorreu, em Porto Alegre, depois de inúmeras visitas ao Brasil. A Europa representa a modernidade. Nela, desenvolveu-se o culto do racionalismo e do "homo faber". A maneira de estar-junto da população brasileira, apesar das desigualdades sociais, contradiz o individualismo moderno europeu.
A noção de laboratório remete à experimentação, tentativa e erro. A relação social no Brasil não corresponde rigorosamente ao que foi a divisão de classes na Europa. O Brasil encarna o sensível e o emocional como raras culturas no mundo. Não me restrinjo a pensar na festa, no Carnaval e no futebol. Refiro-me a uma atitude cotidiana, a um imaginário em que a emoção serve de resistência à adversidade.


"O Brasil encarna o sensível e o emocional como raras culturas"


Folha - A especificidade brasileira viria de uma qualidade da sua cultura ou da condição de país do Terceiro Mundo?
Maffesoli -
Em termos culturais, nunca acreditei muito na idéia de um Terceiro Mundo. Interessa-me compreender a lógica de cada cultura. O Brasil tem a sua. Intelectuais como Roger Bastide e Gilberto Freyre demonstraram isso.
Quantos outros países ditos de Terceiro Mundo, da própria América Latina, são diferentes do Brasil? Todos. Mesmo que existam traços comuns, a especificidade é inegável. O sociólogo não pode negar o cotidiano em nome de teorias que prometem um futuro radioso.
Folha - A especificidade brasileira viria então da miscigenação racial e cultural?
Maffesoli -
Gilberto Freyre, como eu, não tinha uma visão de mundo otimista, mas generosa. Isso significa que privilegiava o vitalismo social às abstrações racionais. A miscigenação é, sem dúvida, o ponto forte e o diferencial da cultura brasileira. Graças a ela, nas condições históricas em que foi produzida, o Brasil desviou-se do modelo europeu. "Casa Grande & Senzala" é ao mesmo tempo o inventário do modo original de colonização do Brasil, tendo a família como suporte e o cruzamento racial como política oficial, e etnografia de um "equilíbrio de antagonismos". Freyre soube integrar mistura e conflito.
Folha - Freyre foi acusado de ajudar a fabricar o mito da democracia racial brasileira.
Maffesoli -
Desde o século 19 a miscigenação é um problema para os intelectuais brasileiros. Em função dela, os deterministas achavam que o Brasil não atingiria a civilização. Freyre rompeu com eles e deu um sinal positivo à miscigenação. A leitura atenta de Freyre mostra que ele nunca negou o papel da economia, do antagonismo de classes, na formação da sociedade brasileira.
Folha - O Brasil não lhe parece um país racista?
Maffesoli -
Existem mecanismos de harmonia conflitual. Nesta expressão, que me é cara, há conflito e interação. Freyre operou dessa maneira para entender o "equilíbrio de antagonismos" brasileiro. Tenho lido muito sobre racismo. Na Europa, em certo momento, predominou a idéia de raça pura. No Brasil, hoje, existe uma hegemonia da contaminação. Não se trata de uma harmonia perfeita, mas conflitual.
Folha - O sr. continua a falar de pós-modernidade, apesar das críticas e das polêmicas em torno desse conceito nos anos 80. A expressão ainda serve como instrumento de compreensão do mundo atual?
Maffesoli -
A minha posição é simples e empírica: emprego o termo pós-modernidade provisoriamente, assim como durante muito tempo se viu a modernidade enquanto pós-medievalidade. Existem elementos emocionais em evidência agora que estavam obscurecidos antes. Vivemos uma espécie de histeria coletiva, identificável em fenômenos como concertos ou jogos de futebol. Não adianta recusar isso. Não julgo, constato.
Folha - A crítica ao racionalismo levanta a suspeita de um elogio ao irracionalismo. Como evitar esse tipo de redução?
Maffesoli -
Gilbert Durand ensinou-me que entre o racional e o irracional existe o não-racional: o imaginário, o emocional, os sentimentos, o sensível, as fantasias, o sonho, tudo o que constitui a vida psíquica das pessoas. O racionalismo tentou expurgar tudo isso. O não-racional nada tem a ver com a canonização do irracionalismo. Não há humanidade sem imaginário. Não se trata de atacar a razão, mas o racionalismo. Em acontecimentos como a morte de Diana ou o Monicagate, o que mobiliza é o passional, não o racional.
Folha - A esquerda mais radical costuma associar pós-modernidade e neoliberalismo. Em consequência, o sr. é visto, muitas vezes, como reacionário?
Maffesoli -
A minha sensibilidade não me coloca entre os conservadores. Associar pós-modernidade e neoliberalismo é uma bobagem, pois o fundamento da pós-modernidade não é econômico.
Na pós-modernidade, há barbárie e o seu oposto. Não se trata da defesa de um paraíso, mas da apresentação de um mundo real, feito de contradições e de conflitos. Nada tenho de otimista. Sou, ao contrário, trágico, mas não dramático. Com certeza, repito, desagrado tanto direita quanto esquerda. É parte da profissão.


"Não se trata de atacar a razão, mas sim o racionalismo"


Folha - O sr. já falava de transfiguração do político e de tribalização do mundo antes da explosão da Internet. A "razão sensível" permitiu-lhe antecipar a revolução levada ao extremo pelas novas tecnologias da comunicação?
Maffesoli -
Não direi antecipar, mas, ao menos, intuir. O Estado-Nação moderno implica a administração de alto para baixo ou do centro para a periferia. Segundo a idéia do positivista Augusto Comte, para gerir adequadamente devia-se reduzir o múltiplo ao uno. O desenvolvimento tecnológico veio coroar a desmontagem desse sistema hierárquico. O uno perde terreno para a diversidade. As relações tornam-se policêntricas. A comunicação deixa de ser unilateral. O receptor torna-se emissor.
Folha - Isso implica mais democracia, mais comunidade e mesmo uma nova esfera do político?
Maffesoli -
Procuro não usar o termo político, que me parece desgastado. A política faz rir. Os políticos são motivo de zombaria. Comunidade era um termo que incomodava por sua conotação cristã. Hoje, penso que a Internet estimula de fato a criar comunidade e que isso é positivo, pois significa participar, debater, opinar, estar presente. A política tradicional não consegue acompanhar isso.
Folha - De toda maneira, as camadas dominantes continuam a monopolizar o poder político tradicional, e os cidadãos a eleger os seus representantes.
Maffesoli -
Na França, o número de eleitores que não se inscrevem para votar é cada vez maior. O político desempenhará cada vez mais o papel de chefe de tribo. Representará simbolicamente um grupo. Função necessária, mas sem o poder real que os políticos imaginam ter. Na França monárquica, o rei era mais um símbolo do que o dono do poder. Enquanto símbolo, serve à coesão. Acredito na diferença entre poder e potência -esta, subterrânea, cristaliza o jogo social de vontades e de interesses. Determina o poder.
Folha - Em outras palavras, a potência é o verdadeiro poder?
Maffesoli -
Sim, mas não devemos dar ao poder a acepção mais nobre. Se as sociedades permanecem coesas, apesar das flutuações do poder, é graças à potência que as estruturam organicamente. A potência simbólica que organiza o social a partir de um imaginário cultural. O sociólogo deve poder descrever esse fenômeno.
Folha - O papel do sociólogo para o sr. incomoda bastante os seus críticos brasileiros. Na sua concepção, o sociólogo deve mostrar em vez de demonstrar, compreender e não explicar, constatar e descrever em vez de criticar. Vê-se nisso o retorno do positivismo.
Maffesoli -
Para mim, trata-se de respeito pela ação instituinte da sociedade. Descrever é uma postura adequada e pertinente em ciências sociais. Para conhecer, é preciso colocar entre parênteses o engajamento. Mais tarde, a crítica poderá ser feita. Mas, em primeiro lugar, devemos despir-nos dos nossos preconceitos para descrever uma situação. Não coloco o político na frente do trabalho de compreensão.
Folha - Não há um desejo de neutralidade por trás disso? Reclama-se que o sr. nunca ultrapassa o estágio da descrição.
Maffesoli -
Não tenho, neste momento, vontade de privilegiar a crítica. Penso que ainda não fizemos as constatações fundamentais sobre esta época. Nisso, não há desejo de neutralidade, pois o subjetivo permeia o trabalho de pesquisa, de escolha e de análise. A descrição nunca é neutra.
O chamado pensamento crítico, entretanto, é policial, totalitário, controlador. Quer pensar pelos outros, para impor conclusões prévias, anteriores à análise. Não apresento a verdade, mas hipóteses. Logo, não me guio pela neutralidade. Defendo o conflito de idéias. Prefiro o dissenso.


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