São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 2000


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TELEVISÃO CRÍTICA

"Aurora" leva marca de Murnau à TV paga

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Em geral, lembramos de 1927 como o ano de "O Cantor de Jazz", o momento em que o cinema passou de mudo a sonoro. Mas 1927 é sobretudo o ano de "Aurora", que o canal Telecine 5 exibe hoje, às 22h.
É possivelmente a primeira vez que um filme mudo passa em TV paga, com a vantagem de que a música foi gravada a partir da partitura original.
A revolução de "Aurora" não se mede pela bilheteria do filme e, sim, pela influência que exerceu sobre os cineastas norte-americanos. Não há um que não tenha ficado extasiado pela técnica soberba que o alemão F.W. Murnau (1888-1931) introduzia.
A história contada é, no caso, o que menos importa: um homem simplório deixa-se seduzir por garota e pelos prazeres da cidade, negligenciando a própria mulher. O que vemos, porém, é fenomenal: toda uma cidade reproduzida em estúdios (os cenários construídos em perspectiva davam grandeza e profundidade; os figurantes também eram dispostos em perspectiva -nas partes de trás, crianças faziam o papel de adultos); movimentos de câmera assombrosos; a capacidade de narrar uma história visualmente como nunca se vira antes.
De um modo ou de outro, praticamente todos os grandes cineastas americanos responderam ao impacto de "Aurora". King Vidor admite que, sem "Aurora", não teria concebido "A Turba" ("Crowd"), feito um ano depois, marcado pela histórica cena inicial (o plano se abre num geral de um enorme escritório cheio de mesas uniformes, com pessoas uniformes, e aos poucos aproxima-se, até isolar em primeiro plano o protagonista do filme).
Outros, como Howard Hawks, confessam que tentaram copiar os complexos movimentos de câmera e a concepção de luz de Murnau, com resultados pífios. Neste caso, "Aurora" terá servido para indicar o caminho pessoal que deveria seguir (em Hawks, o dos movimentos discretíssimos, da "câmera à altura do homem", da iluminação seca, sem efeitos).
Por adesão ou por oposição, a influência foi imensa.
Embora tenha sido rodado nos EUA, "Aurora" tem um quê inegavelmente germânico. As brumas, a cidade feérica, o caráter um tanto abstrato dos personagens são marcas características dos anos 20 na Alemanha e, em particular, do estilo cintilante de Murnau (não por acaso, vendo-o trabalhar na Alemanha, alguns anos antes, Hitchcock também tratou de copiar sua técnica).
Murnau chegou aos EUA em 1926 com carta branca, fato raro em Hollywood, liberdade para gastar o quanto entendesse e para fazer seu filme como quisesse.
Vinha precedido por sucessos como "Nosferatu" (1922) e "Fausto" (1926). Era o homem que mais profundamente concebera o cinema, até ali (e talvez para sempre), como arte autônoma do olhar, livre de influências teatrais e literárias. O filme teve prestígio e repercussão imensos, mas não foi o sucesso que se esperava. Fez ainda três filmes lá, antes de morrer em um desastre de automóvel.
"Aurora" não é programa para quem chega em casa cansado e quer um pouco de evasão. Mas qualquer um que pretenda, ainda hoje, compreender o que é cinema ou se exercitar com uma câmera não pode perder a chance de vê-lo. Ainda temos muito a aprender com Murnau.


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