São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 2000


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FERNANDO GABEIRA

Despachando o espírito de Celso Pitta

Se esse prefeito de São Paulo tivesse o cuidado de ler o "Livro Tibetano dos Mortos", encontraria um conselho fundamental. Ele é destinado aos primeiros momentos do morto e o adverte energicamente para que vá embora, não insista em ficar em torno da sua casa, dos familiares e amigos. É preciso iniciar logo a viagem para chegar depois de alguns dias à reencarnação.
Já o primeiro ensinamento do "Livro Egípcio dos Mortos" é intitulado "Sair à Luz". Aconselha o morto a partir logo, porque a viagem para o outro mundo ocuparia toda a primeira noite. O sacerdote caminha à frente do cortejo e declarava ao morto que ele era Tot, o grande Deus, e teria poder de fazer o bem e matar todos os seus inimigos no além.
Portanto, dois livros fundamentais aconselham a ir embora logo, e um deles ainda acena com a possibilidade de matar todos os inimigos no outro mundo, mais um incentivo para a viagem que o Celso Pitta deveria ter iniciado, assim que foi declarado morto.
Não é só essa demora que me intriga no episódio de corrupção e incompetência em São Paulo. Outro dia, a televisão anunciava que os promotores se dividiram em grupos para apurar o caso. A tarefa de um dos grupos era determinar se Pitta tinha praticado corrupção passiva ou ativa.
Isso me lembrou dos tempos em que discutíamos o projeto da Marta Suplicy legalizando a união de pessoas do mesmo sexo. Um casal gay de Curitiba veio depor na comissão, e um dos mais conservadores entre os deputados perguntou qual deles era passivo, qual era o ativo. Foi uma certa perplexidade. Lembro-me de que tomei a palavra para dizer que isso tinha importância para eles porque, se um deles manteve 500 relações homossexuais e em todas foi ativo, seria saudado com gritos de "você é um macho, meu filho".
Assim como não só é complexo como inútil determinar quem é passivo ou quem é ativo, numa relação sexual desse tipo, o mesmo acontece no caso de corrupção. Claro que o amor entre duas pessoas não pode ser comparado com um crime contra a confiança e a economia popular. Mas a fluidez das fronteiras entre passivo e ativo é uma analogia a ser estudada.
Se Pitta comprou mesmo os 30 vereadores, então ele foi ativo. Mas, se perguntarmos de onde veio a grana para comprar todos esses vereadores, possivelmente chegaremos a empresas que prestam serviços à prefeitura ou mesmo a desvios da verba dos precatórios. Nesse caso, ele seria passivo, trocando de posições num mesmo episódio ou, se quiserem, numa mesma noite.
Há uma coisa em política parecida com a fotografia. Ambas parecem atividades fáceis, ao alcance de qualquer um. De fato, qualquer pessoa pode tirar uma foto razoável com os avanços técnicos modernos. Qualquer pessoa pode também dar uma contribuição política com os avanços da democracia participativa e da transparência .
Impossível é inventar um prefeito para a maior cidade do país da noite para o dia. Daí essa permanente idéia de canastrão que Pitta transmite cada vez que usa um vocabulário político e faz pose de líder.
Com todo respeito pelas denúncias de Nicéa Pitta, a ex-mulher do prefeito, cada vez que ela posa com a bandeira nacional e faz declarações patrióticas, não consigo deixar de sentir também uma sensação de falsidade. Diz o versinho de uma linda canção brasileira: "Nessa novela, não quero ser seu amigo". Diria então que, nessa novela, vilões e heróis padecem da mesma falta de intimidade com o próprio papel.
Pitta disse, dias antes de ser fulminado definitivamente, no auge de chuvas e tempestades, que queria ser bailarino. Isso porque Fernando Henrique havia revelado, dias antes, que gostaria de ter sido ator.
Claro que é uma bobagem um presidente ficar dizendo o que gostaria de ter sido quando todos esperam para saber o que ele está fazendo e o que ele fará. Mas isso é o problema da superexposição na mídia, que leva a pessoa pública a revelar desejos, fobias, enfim uma total pseudotransparência.
Pitta copiou mal porque a cidade estava em crise, e não era hora de ficar dizendo que queria ser bailarino. O mais grave é que declarou seu enorme desejo de ser bailarino e não conseguiu perceber até agora que dançou. Isso é patético como o personagem de "O Castelo", de Kafka, que não percebeu que a porta esteve sempre aberta para ele.
Um dia vou recolher todos esses cacos e investigar um pouco melhor como esse divórcio na família Pitta repercutiu no imaginário popular. Uma loura, por exemplo, teria mesmo de aparecer, mesmo se não existisse. Todos na vida têm um caso, uma loura. Negros bem-sucedidos, então, mesmo que não tenham, são acusados de desejar secretamente uma.
A grande vantagem é que milhões de morenas viraram louras, e essa transfiguração coletiva acabou embaralhando as regras do jogo. Claro que alguns puristas querem saber se a loura é natural ou não, se os seios foram feitos pelo "criador" como dizem os colunistas sociais, mas isto está se tornando um problema cada vez menos transcendente.
Há muitos caminhos de investigação. Os promotores quiseram abrir este, interrogando se Pitta foi ativo ou passivo. Diante de um caso como o de São Paulo, os americanos costumam dizer que há um "revólver fumegante", um indício muito forte de que houve crime. Os brasileiros classificam esta situação como "batom na cueca".
É por isso que, no momento, dou prioridade à leitura de dois fundamentais monumentos da humanidade, os dois grandes livros dos mortos, o tibetano e o egípcio.
Ou, se quiserem uma versão menos tradicional, basta consultar Millôr Fernandes, que identificou a grande questão matinal, depois de uma noite com alguém bonito e vazio: "O que fazer com o corpo?".



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