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FERNANDO GABEIRA
Despachando o espírito de Celso Pitta
Se esse prefeito de São Paulo tivesse o cuidado de ler o "Livro Tibetano dos Mortos", encontraria
um conselho fundamental. Ele é
destinado aos primeiros momentos do morto e o adverte energicamente para que vá embora, não
insista em ficar em torno da sua
casa, dos familiares e amigos. É
preciso iniciar logo a viagem para
chegar depois de alguns dias à
reencarnação.
Já o primeiro ensinamento do
"Livro Egípcio dos Mortos" é intitulado "Sair à Luz". Aconselha o
morto a partir logo, porque a viagem para o outro mundo ocuparia toda a primeira noite. O sacerdote caminha à frente do cortejo e
declarava ao morto que ele era
Tot, o grande Deus, e teria poder
de fazer o bem e matar todos os
seus inimigos no além.
Portanto, dois livros fundamentais aconselham a ir embora logo,
e um deles ainda acena com a
possibilidade de matar todos os
inimigos no outro mundo, mais
um incentivo para a viagem que o
Celso Pitta deveria ter iniciado,
assim que foi declarado morto.
Não é só essa demora que me intriga no episódio de corrupção e
incompetência em São Paulo. Outro dia, a televisão anunciava que
os promotores se dividiram em
grupos para apurar o caso. A tarefa de um dos grupos era determinar se Pitta tinha praticado corrupção passiva ou ativa.
Isso me lembrou dos tempos em
que discutíamos o projeto da
Marta Suplicy legalizando a
união de pessoas do mesmo sexo.
Um casal gay de Curitiba veio depor na comissão, e um dos mais
conservadores entre os deputados
perguntou qual deles era passivo,
qual era o ativo. Foi uma certa
perplexidade. Lembro-me de que
tomei a palavra para dizer que isso tinha importância para eles
porque, se um deles manteve 500
relações homossexuais e em todas
foi ativo, seria saudado com gritos
de "você é um macho, meu filho".
Assim como não só é complexo
como inútil determinar quem é
passivo ou quem é ativo, numa relação sexual desse tipo, o mesmo
acontece no caso de corrupção.
Claro que o amor entre duas pessoas não pode ser comparado com
um crime contra a confiança e a
economia popular. Mas a fluidez
das fronteiras entre passivo e ativo é uma analogia a ser estudada.
Se Pitta comprou mesmo os 30
vereadores, então ele foi ativo.
Mas, se perguntarmos de onde
veio a grana para comprar todos
esses vereadores, possivelmente
chegaremos a empresas que prestam serviços à prefeitura ou mesmo a desvios da verba dos precatórios. Nesse caso, ele seria passivo, trocando de posições num
mesmo episódio ou, se quiserem,
numa mesma noite.
Há uma coisa em política parecida com a fotografia. Ambas parecem atividades fáceis, ao alcance de qualquer um. De fato, qualquer pessoa pode tirar uma foto
razoável com os avanços técnicos
modernos. Qualquer pessoa pode
também dar uma contribuição
política com os avanços da democracia participativa e da transparência .
Impossível é inventar um prefeito para a maior cidade do país da
noite para o dia. Daí essa permanente idéia de canastrão que Pitta
transmite cada vez que usa um
vocabulário político e faz pose de
líder.
Com todo respeito pelas denúncias de Nicéa Pitta, a ex-mulher
do prefeito, cada vez que ela posa
com a bandeira nacional e faz declarações patrióticas, não consigo
deixar de sentir também uma
sensação de falsidade. Diz o versinho de uma linda canção brasileira: "Nessa novela, não quero ser
seu amigo". Diria então que, nessa novela, vilões e heróis padecem
da mesma falta de intimidade
com o próprio papel.
Pitta disse, dias antes de ser fulminado definitivamente, no auge
de chuvas e tempestades, que queria ser bailarino. Isso porque Fernando Henrique havia revelado,
dias antes, que gostaria de ter sido
ator.
Claro que é uma bobagem um
presidente ficar dizendo o que
gostaria de ter sido quando todos
esperam para saber o que ele está
fazendo e o que ele fará. Mas isso é
o problema da superexposição na
mídia, que leva a pessoa pública a
revelar desejos, fobias, enfim uma
total pseudotransparência.
Pitta copiou mal porque a cidade estava em crise, e não era hora
de ficar dizendo que queria ser
bailarino. O mais grave é que declarou seu enorme desejo de ser
bailarino e não conseguiu perceber até agora que dançou. Isso é
patético como o personagem de
"O Castelo", de Kafka, que não
percebeu que a porta esteve sempre aberta para ele.
Um dia vou recolher todos esses
cacos e investigar um pouco melhor como esse divórcio na família
Pitta repercutiu no imaginário
popular. Uma loura, por exemplo,
teria mesmo de aparecer, mesmo
se não existisse. Todos na vida
têm um caso, uma loura. Negros
bem-sucedidos, então, mesmo que
não tenham, são acusados de desejar secretamente uma.
A grande vantagem é que milhões de morenas viraram louras,
e essa transfiguração coletiva acabou embaralhando as regras do
jogo. Claro que alguns puristas
querem saber se a loura é natural
ou não, se os seios foram feitos pelo "criador" como dizem os colunistas sociais, mas isto está se tornando um problema cada vez menos transcendente.
Há muitos caminhos de investigação. Os promotores quiseram
abrir este, interrogando se Pitta
foi ativo ou passivo. Diante de um
caso como o de São Paulo, os americanos costumam dizer que há
um "revólver fumegante", um indício muito forte de que houve crime. Os brasileiros classificam esta
situação como "batom na cueca".
É por isso que, no momento,
dou prioridade à leitura de dois
fundamentais monumentos da
humanidade, os dois grandes livros dos mortos, o tibetano e o
egípcio.
Ou, se quiserem uma versão menos tradicional, basta consultar
Millôr Fernandes, que identificou
a grande questão matinal, depois
de uma noite com alguém bonito
e vazio: "O que fazer com o corpo?".
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