São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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CRÍTICA

"América" prenuncia tempos esquisitos

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

No cinema americano, quando o céu se tinge de vermelho, é sinal de que alguma força sobrenatural está se movendo. Na novela brasileira, não se sabe ainda o que é, exceto que no segundo capítulo de "América" apareceu sobre São Paulo, precedendo o encontro da quase-mocinha Sol com o bandido Alex. Mas não deixa de ser um indício do ar carregado que vai tomar conta do imaginário nacional dos próximos meses.
Tempos de Gloria Perez e Jayme Monjardim na novela. Tempos de padecimentos inenarráveis -e, de fato, nesse tipo de telenovela a narrativa já quase desapareceu-, de história que anda em círculos e, como já apontou Esther Hamburger em sua crítica ao capítulo de estréia (Ilustrada da última quarta), de paisagens desfilando na tela.
Com quatro capítulos decorridos no momento em que se escreve esta coluna, já dá para ter uma idéia do volume assustador de sofrimento que vem por aí. Mesmo com o cipoal de nomes -são 60 personagens-, quem sofre e como está bem delineado: o amor predestinado submetido a revezes infinitos, a moça rica e rebelde que vai ter um comportamento autodestrutivo, a infelicidade da mulher burguesa, mães dolorosas e por aí vai.
O que permanece uma incógnita sempre que Perez assina uma novela é que tipo de ginástica será necessária para garantir por oito ou dez meses o ritmo -e a audiência, claro, que começou impressionante com média de 54, mas no terceiro capítulo já caiu para 42 pontos no Ibope - dessa encenação reiterativa de emoções. Vale tudo, mas vale tudo mesmo. Lembrem-se de "O Clone" e suas dobras espaço-temporais, seus cavalos brancos e sua estética esotérica.
E há as questões -do tratamento justo ou injusto com os animais, da deficiência visual, do homossexualismo, da imigração ilegal e sabe-se lá mais do quê. Aliás, que questões são essas, afinal? Antes, ainda: de onde tiraram essa idéia que uma novela tem que abordar quaisquer questões, "mostrar" alguma coisa? Que pauta, que agenda é essa que a TV vem escolhendo para ser discutida pela sociedade e que acaba sendo, de fato, dado que alimenta matérias jornalísticas diversas, chega às capas das revistas semanais etc.?
Parece desinformada da história da TV e, ingênua a pergunta, mas será que mesmo assim ela não é necessária? Sobretudo, porque um sinal parece ter se invertido: se nos anos 70/80, a novela conseguia trazer para a ficção mudanças de comportamento e de mentalidade que estavam sendo gestadas na vida social, hoje a TV tem um papel muito mais propositivo nesse sentido e a ficção passou a ser substituída por esse cardápio mais ou menos aleatório de "questões".
Não se quer afirmar que elas não existam na sociedade, mas que sua relevância, sua dimensão, seus significados e, sobretudo, sua abrangência estão sendo formatados antes pela novela. Que tempos esquisitos, credo!


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