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FERREIRA GULLAR
A máquina de sonhar
O sonho , conforme disse
Freud, é "o guardião do sono", ou seja, se trata de um recurso de que nossa mente se vale para continuar dormindo quando
algum "ruído" externo ou interno
ameaça acordar-nos. Isso me parece verdade de experiência própria: certa noite pus o despertador para me acordar cedo e, na
hora que ele disparou, sonhei que
fazia um lindo passeio no campo
numa caleça que tinha uma sineta igual ao som do despertador. O
sonho tinha o propósito de me fazer acreditar que não havia nenhum despertador soando ao lado da minha cama. Sacanagem.
Mas o sonho não tem apenas essa função tão óbvia. Expressaria
também desejos e pulsões que
nossa consciência recalcara, censurara, impedindo-os que se manifestassem. Nessa hipótese, o sonho seria uma mensagem simbólica, cifrada, que encontraria nessa simbologia um modo de burlar
a censura da consciência. E aí entram os psicanalistas com os métodos de interpretação dos sonhos
para nos ajudar a entender o que
o inconsciente tenta nos dizer.
Nisso Freud não fez mais que sistematizar uma crença milenar do
ser humano de que os sonhos são
portadores de mensagens cifradas, às vezes premonitórias. Noutras palavras, o sonho está no lado oposto ao da consciência.
Mas aí leio num jornal que um
psicofisiólogo norte-americano
inventou a máquina de sonhar o
sonho lúcido! Não se trata de uma
metáfora e, sim, de um equipamento semelhante a uns óculos
escuros, que detecta o momento
em que a pessoa entra na fase do
sono; aí o aparelho passa a emitir
flashes e sons que ativam o córtex
pré-frontal, área do cérebro responsável pela consciência, que fica adormecida durante a noite;
percebidos pelo cérebro, os sons e
as luzes entram no filme onírico,
indicando que o sonho começou.
Trocando em miúdos, a partir de
agora, em vez do inconsciente, o
que vai provocar os nossos sonhos
é a máquina do dr. Stephen LaBerge.
- A que ponto chegamos!, exclamaria Freud se vivo ainda fosse. Substituir o inconsciente por
uma máquina! Esses americanos...
Como vivo já não é, opinam por
ele seus discípulos brasileiros, segundo os quais o "sonho lúcido" é
uma aberração que pode, inclusive, provocar traumas e lesões nos
pacientes. Essa não é, evidentemente, a opinião do Instituto de
Lucidez, de Stanford, que defende
a utilidade da máquina de sonhar e a vende pelo preço de um
DVD: US$ 300 (R$ 827) cada
uma.
Sabemos que americanos têm
mania de inventar máquinas de
todo o tipo, e não resta dúvida de
que algumas delas mudaram a
nossa vida, como é o caso do telefone. O avião não, que este foi inventado por um brasileiro, nem
muito menos a máquina de descascar ovos, obra de um parente
meu (distante, claro), que não
vingou não sei por quê. Mas, afinal de contas, para que serve a
máquina de sonhar?
A resposta, que logo me acode, é
que, sendo o sonho uma coisa
maravilhosa, uma máquina que
nos faz sonhar dispensa justificativa, e por US$ 300 então... Sei
que, ao dizer isso, posso me tornar
suspeito de ser a favor da invasão
do Iraque pelas forças norte-americanas, mas seria suspeita infundada, uma vez que minha simpatia pelo uso prático dos sonhos
vem de longe, mais precisamente
da leitura de um livro de André
Breton, nos anos 50, e que se intitula "Les Vases Communicants".
E sabem que "vasos comunicantes" são esses? A realidade e o sonho. O livro é de 1932, mas, já em
1924, no primeiro manifesto surrealista, Breton perguntava: "Não
pode o sonho ser aplicado também na solução de problemas
fundamentais da vida?".
Devo esclarecer que, para o papa do surrealismo, os problemas
fundamentais da vida não eram
a saúde, a educação, a aposentadoria, nada disso: eram os envolvidos com a fusão do onírico e do
real, para tornar possível a realização dos desejos que a realidade
não permite, como, por exemplo,
obter os íntimos favores da mulher amada. A dificuldade estava
em que, para conseguir nos sonhos o que não se consegue na vida real, seria preciso governá-los.
Foi a resposta a esse problema
que Breton encontrou no livro
"Les Rêves et les Moyens de les Diriger" (os sonhos e os meios de
conduzi-los), escrito pelo marquês de Hervey-Saint-Denys, em
1867.
Mas não se trata de mera teoria. O marquês conta no livro como punha em prática os seus métodos para passar noites de amor
com a mulher que desejava. Um
deles consistia em mastigar uma
raiz de íris enquanto com ela
dançava e, mais tarde, em casa,
após adormecer, um criado introduzia-lhe na boca outro pedaço
da mesma raiz, induzindo-o assim a sonhar com a moça.
O outro procedimento, um pouco mais complicado, envolvia um
maestro, uma orquestra, duas
mulheres e duas valsas. Quando a
orquestra tocava determinada
valsa, ele tirava para dançar uma
das damas; quando tocava a segunda valsa, tirava a outra. Depois que adormecia, valendo-se
de um instrumento engenhoso
que juntava um despertador a
uma caixa de música, era induzido a sonhar com uma das mulheres e depois com a outra, conforme a valsa que, dormindo, ouvia
em surdina.
Breton, entusiasmado com essas espertezas do marquês, chegou a compará-lo a Rimbaud,
que pregara "o desregramento
metódico de todos os sentidos". O
que não se pode garantir é se o
marquês, ainda que em sonhos,
conseguia entregar-se a tais desregramentos ou se não ia além de
dançar com as parceiras suas valsas prediletas.
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