São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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FERREIRA GULLAR

A máquina de sonhar

O sonho , conforme disse Freud, é "o guardião do sono", ou seja, se trata de um recurso de que nossa mente se vale para continuar dormindo quando algum "ruído" externo ou interno ameaça acordar-nos. Isso me parece verdade de experiência própria: certa noite pus o despertador para me acordar cedo e, na hora que ele disparou, sonhei que fazia um lindo passeio no campo numa caleça que tinha uma sineta igual ao som do despertador. O sonho tinha o propósito de me fazer acreditar que não havia nenhum despertador soando ao lado da minha cama. Sacanagem.
Mas o sonho não tem apenas essa função tão óbvia. Expressaria também desejos e pulsões que nossa consciência recalcara, censurara, impedindo-os que se manifestassem. Nessa hipótese, o sonho seria uma mensagem simbólica, cifrada, que encontraria nessa simbologia um modo de burlar a censura da consciência. E aí entram os psicanalistas com os métodos de interpretação dos sonhos para nos ajudar a entender o que o inconsciente tenta nos dizer. Nisso Freud não fez mais que sistematizar uma crença milenar do ser humano de que os sonhos são portadores de mensagens cifradas, às vezes premonitórias. Noutras palavras, o sonho está no lado oposto ao da consciência.
Mas aí leio num jornal que um psicofisiólogo norte-americano inventou a máquina de sonhar o sonho lúcido! Não se trata de uma metáfora e, sim, de um equipamento semelhante a uns óculos escuros, que detecta o momento em que a pessoa entra na fase do sono; aí o aparelho passa a emitir flashes e sons que ativam o córtex pré-frontal, área do cérebro responsável pela consciência, que fica adormecida durante a noite; percebidos pelo cérebro, os sons e as luzes entram no filme onírico, indicando que o sonho começou. Trocando em miúdos, a partir de agora, em vez do inconsciente, o que vai provocar os nossos sonhos é a máquina do dr. Stephen LaBerge.
- A que ponto chegamos!, exclamaria Freud se vivo ainda fosse. Substituir o inconsciente por uma máquina! Esses americanos...
Como vivo já não é, opinam por ele seus discípulos brasileiros, segundo os quais o "sonho lúcido" é uma aberração que pode, inclusive, provocar traumas e lesões nos pacientes. Essa não é, evidentemente, a opinião do Instituto de Lucidez, de Stanford, que defende a utilidade da máquina de sonhar e a vende pelo preço de um DVD: US$ 300 (R$ 827) cada uma.
Sabemos que americanos têm mania de inventar máquinas de todo o tipo, e não resta dúvida de que algumas delas mudaram a nossa vida, como é o caso do telefone. O avião não, que este foi inventado por um brasileiro, nem muito menos a máquina de descascar ovos, obra de um parente meu (distante, claro), que não vingou não sei por quê. Mas, afinal de contas, para que serve a máquina de sonhar?
A resposta, que logo me acode, é que, sendo o sonho uma coisa maravilhosa, uma máquina que nos faz sonhar dispensa justificativa, e por US$ 300 então... Sei que, ao dizer isso, posso me tornar suspeito de ser a favor da invasão do Iraque pelas forças norte-americanas, mas seria suspeita infundada, uma vez que minha simpatia pelo uso prático dos sonhos vem de longe, mais precisamente da leitura de um livro de André Breton, nos anos 50, e que se intitula "Les Vases Communicants". E sabem que "vasos comunicantes" são esses? A realidade e o sonho. O livro é de 1932, mas, já em 1924, no primeiro manifesto surrealista, Breton perguntava: "Não pode o sonho ser aplicado também na solução de problemas fundamentais da vida?".
Devo esclarecer que, para o papa do surrealismo, os problemas fundamentais da vida não eram a saúde, a educação, a aposentadoria, nada disso: eram os envolvidos com a fusão do onírico e do real, para tornar possível a realização dos desejos que a realidade não permite, como, por exemplo, obter os íntimos favores da mulher amada. A dificuldade estava em que, para conseguir nos sonhos o que não se consegue na vida real, seria preciso governá-los. Foi a resposta a esse problema que Breton encontrou no livro "Les Rêves et les Moyens de les Diriger" (os sonhos e os meios de conduzi-los), escrito pelo marquês de Hervey-Saint-Denys, em 1867.
Mas não se trata de mera teoria. O marquês conta no livro como punha em prática os seus métodos para passar noites de amor com a mulher que desejava. Um deles consistia em mastigar uma raiz de íris enquanto com ela dançava e, mais tarde, em casa, após adormecer, um criado introduzia-lhe na boca outro pedaço da mesma raiz, induzindo-o assim a sonhar com a moça.
O outro procedimento, um pouco mais complicado, envolvia um maestro, uma orquestra, duas mulheres e duas valsas. Quando a orquestra tocava determinada valsa, ele tirava para dançar uma das damas; quando tocava a segunda valsa, tirava a outra. Depois que adormecia, valendo-se de um instrumento engenhoso que juntava um despertador a uma caixa de música, era induzido a sonhar com uma das mulheres e depois com a outra, conforme a valsa que, dormindo, ouvia em surdina.
Breton, entusiasmado com essas espertezas do marquês, chegou a compará-lo a Rimbaud, que pregara "o desregramento metódico de todos os sentidos". O que não se pode garantir é se o marquês, ainda que em sonhos, conseguia entregar-se a tais desregramentos ou se não ia além de dançar com as parceiras suas valsas prediletas.


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