São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2008

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Um judeu na Páscoa brasileira

JONATHAN NOSSITER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil deve ser o único país do mundo em que me pediriam para escrever um texto sobre a Páscoa. Afinal, na Europa e na América do Norte, as pessoas teriam demasiado receio de causar ofensa a um judeu, mesmo que não religioso, para convidá-lo a escrever sobre esse feriado profundamente cristão.
Mas é exatamente esse espírito de tolerância -ou de indiferença às diferenças religiosas- que faz do Brasil um lar tão bem-vindo para estrangeiros e outsiders de todos os tipos. E foi com certeza esse espírito que me levou a pedir a cidadania brasileira -o que, por sinal, fiz na Páscoa do ano passado.
Será que levaremos com a minha mulher, Paula Prandini, paulistana e católica (não praticante), nossos três filhos (todos nascidos no Rio) à missa de Páscoa? Ela nunca tocou no assunto, portanto duvido de que isso vá acontecer.
Parece-me algo mais próprio do espírito dela levar Miranda, Capitu e Noah a fazer sua primeira busca por ovos de Páscoa. E que seria mais do interesse das crianças -apesar de seus paladares infantis serem muito mais instigados pelo ácido que pelo doce.
Sei que vou esperar com paciência por mais alguns anos até poder mostrar a meus filhos a surpresa de Páscoa que venho guardando há muito tempo para eles: um dos dois ou três filmes que mais me deram vontade de ser cineasta, "O Evangelho Segundo São Mateus", de Pier Paolo Pasolini.
Assisti a esse filme pela primeira vez aos 18 anos e já o vi uma dúzia de vezes desde então. Se existe algum espírito que tenho a esperança de transmitir a nossos filhos, ele está presente nesse filme.
Pasolini conseguiu conciliar imagens quase documentais em preto-e-branco, que lembram uma xilogravura primitiva, com um misto de enaltecedoras fugas e missas de Bach junto com um estudante de economia, refugiado da ditadura de Franco que durante dois anos rejeitou o convite para representar Jesus Cristo.
Mais importante ainda, ele encontrou uma maneira pessoal de conciliar sua homossexualidade assumida e celebratória com um catolicismo igualmente fervoroso, acrescido de uma consciência ainda mais intensa da injustiça social que precisava ser corrigida por meio da tolerância, e não da violência -uma postura que, aparentemente, deixou de interessar aos cineastas.
Mas neste ano vamos nos limitar à caça aos ovos de Páscoa. Afinal, as meninas ainda não têm três anos, e nosso garoto ainda não completou dois.


JONATHAN NOSSITER é sommelier e cineasta norte-americano, diretor de "Mondovino", entre outros

Tradução de CLARA ALLAIN


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