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Um judeu na Páscoa brasileira
JONATHAN NOSSITER
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Brasil deve ser o único país
do mundo em que me pediriam
para escrever um texto sobre a
Páscoa. Afinal, na Europa e na
América do Norte, as pessoas
teriam demasiado receio de
causar ofensa a um judeu, mesmo que não religioso, para convidá-lo a escrever sobre esse feriado profundamente cristão.
Mas é exatamente esse espírito de tolerância -ou de indiferença às diferenças religiosas- que faz do Brasil um
lar tão bem-vindo para estrangeiros e outsiders de todos os
tipos. E foi com certeza esse espírito que me levou a pedir a
cidadania brasileira -o que,
por sinal, fiz na Páscoa do ano
passado.
Será que levaremos com a
minha mulher, Paula Prandini,
paulistana e católica (não praticante), nossos três filhos (todos
nascidos no Rio) à missa de
Páscoa? Ela nunca tocou no assunto, portanto duvido de que
isso vá acontecer.
Parece-me algo mais próprio
do espírito dela levar Miranda,
Capitu e Noah a fazer sua primeira busca por ovos de Páscoa. E que seria mais do interesse das crianças -apesar de
seus paladares infantis serem
muito mais instigados pelo ácido que pelo doce.
Sei que vou esperar com paciência por mais alguns anos
até poder mostrar a meus filhos
a surpresa de Páscoa que venho
guardando há muito tempo para eles: um dos dois ou três filmes que mais me deram vontade de ser cineasta, "O Evangelho Segundo São Mateus", de
Pier Paolo Pasolini.
Assisti a esse filme pela primeira vez aos 18 anos e já o vi
uma dúzia de vezes desde então. Se existe algum espírito
que tenho a esperança de transmitir a nossos filhos, ele está
presente nesse filme.
Pasolini conseguiu conciliar
imagens quase documentais
em preto-e-branco, que lembram uma xilogravura primitiva, com um misto de enaltecedoras fugas e missas de Bach
junto com um estudante de
economia, refugiado da ditadura de Franco que durante dois
anos rejeitou o convite para representar Jesus Cristo.
Mais importante ainda, ele
encontrou uma maneira pessoal de conciliar sua homossexualidade assumida e celebratória com um catolicismo
igualmente fervoroso, acrescido de uma consciência ainda
mais intensa da injustiça social
que precisava ser corrigida por
meio da tolerância, e não da
violência -uma postura que,
aparentemente, deixou de interessar aos cineastas.
Mas neste ano vamos nos limitar à caça aos ovos de Páscoa.
Afinal, as meninas ainda não
têm três anos, e nosso garoto
ainda não completou dois.
JONATHAN NOSSITER é sommelier e cineasta
norte-americano, diretor de "Mondovino", entre
outros
Tradução de CLARA ALLAIN
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