São Paulo, sexta, 20 de março de 1998

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Seinfeld

O comediante Jerry Seinfeld fala com exclusividade à Folha sobre o fim de sua série de TV, uma das mais populares de todos os tempos, já responsabilizada pela ruptura do aristotelismo na TV; "O que é isso", diz ele, "sou de Long Island!"

GERALD THOMAS
de Nova York

Repórteres de 7 telejornais estão plantados do lado de fora do Royale Theater, na rua 45, esperando a saída do público da peça "Art". Vale notar que esse não é o público de estréia e, tampouco, a platéia está coalhada de celebridades. Os telejornais estão ávidos por entrevistar justamente o público pagante, para tentar desvendar o mistério sobre o enorme sucesso desse espetáculo recém estreado na Broadway. O que está deixando muita gente perplexa e o fato de "Art" ter esse tipo de aceitação, expondo uma discussão considerada de elite, feita pra poucos, sem usar nenhum efeito espetacular. No centro da trama entre os três atores está um quadro, ou melhor, uma tela, em branco.
"Você entende de arte?" pergunta o repórter ao primeiro que sai. Tentando manter a calma, a senhora de aproximadamente 60 anos, que não consegue esconder a excitação por estar "live on tv", responde que depois de ver "Art" ela se sente "iluminada", e que o mistério sobre essa "arte moderna ininteligível", finalmente, chegava ao fim. "Agora acho que entendo melhor a sociedade em minha volta", diz ela. Várias respostas desse estilo se seguem e o no final da reportagem tem-se a impressão de que o grande truque da montagem reside em desnudar o "grande truque" da arte moderna. Quem dera fosse isso!
O "grande truque" de "Art", na verdade, consiste em roubar, ou melhor, importar para esse final de século, uma ansiedade muito peculiar e específica do início dele: a necessidade do artista em travar contato com seus mecanismos intelectuais e existencialistas, relegando seus dons figurativos, impressionistas e expressionistas a uma mera lembrança indesejável e ingênua. Esse período, que pode-se dizer ter começado no fim do século passado com Malevich, que pintou o primeiro quadro de branco (ou deixou a tela em branco), dava início a uma longa - e até hoje incansável - jornada de um processo de investigação do "ser ou não ser" da arte.
Se "Art" pegasse emprestado as últimas instâncias dessas investigações - interessantíssimas por sinal - essa empreitada não seria tão hipócrita. "Art" e uma empreitada oportunista. A peça jamais teria chegado a Broadway se a mulher de Sean Connery (!!!) não tivesse se apaixonado por ela e jurado sobre a Bíblia de 007 que não viveria mais um dia se não a visse produzida na Broadway. Connery então tirou seus milhões da Suíça e os transferiu para o palco da rua 45. É evidente que Connery, ou sua mulher, jamais ouviram falar em Malevich, Joseph Albers ou Robert Rauschenberg, os três anti-heróis da evolução da arte que, em décadas distintas, cobriram de branco uma tela e, assim, pavimentaram o futuro com conjecturas profundas sobre a validade ou não de ser artista.
Melvich pintava o branco pra escapar dos futuristas dogmáticos da Rússia do final do século. Albers usava o branco quase como protesto contra o funcionalismo, imposto à arte da Bauhaus (de onde era um dos líderes) pela ascenção do nazismo. Rauschenberg usou várias camadas de branco sobre uma tela como forma de mostrar que a tirania de Clement Greenberg e Harold Rosenberg (virtuais donos do movimento monopolista abtrato-expressionista de NY dos anos cinquenta), chegará ao fim. Greenberg, conhecido por sair na porrada com aqueles que divergiam dele, era o "mentor" absoluto de Jackson Pollock e Barnet Newman, os "papas" da "flat painting" (pintura sem profundidade). Como se vê, a cronologia e farta no território da discussão sobre o uso do branco na história da arte.
Mas o que importa a cronologia para os lucristas da Broadway? "Art" explora a falta de conhecimento da platéia sobre assuntos considerados herméticos ou eruditos e os reintroduz na história como sendo novos. Ao pegar emprestado uma discussão há décadas superada e a embrulhando em papel de presente imaculado, "Art" presta um enorme des-serviço as questões fundamentais desse século e desmerece a própria dinâmica e inteligência artística que pretende retratar. O que é muito pior, "Art" demonstra que o teatro demora quase um século para absorver as importantes discussões estéticas que moldaram nossas vidas de uma forma ou de outra.
"Art" opta pelo humor. "Você vai rolar de rir", exclama o crítico Clive Barnes, do New York Post. "Muito engraçada", escreve Ben Bradley, do New York Times. "Art" prega uma peça no público desinformado e prova que a história passou a mera coadjuvante da publicidade. Não é difícil rir de uma discussão descontextualizada. Centrada no presente, o preço altissimo de uma tela deixada em branco pode - e deve - parecer ridículo.
Como foi justamente na área da pintura onde as mais radicais e interessantes discussões desse século se deram, não seria de admirar se, como revanche, os pintores contemporâneos resolvessem fazer chacota do teatro, retratando Stanislavski ou Tchecov como a "última" novidade. Graças a Deus o público interessado em arte não cairia nessa e entenderia o evento meramente como uma piada daltônica.

e-mail: geraldthomas@uol.com.br


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