São Paulo, sexta, 20 de março de 1998

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Ah, como fingiam as mulheres dos anos 50...

NINA HORA
especial para a Folha

O disco "Tabajara Visita Sinatra" traz os anos 50 para o presente, em preto e branco, numa madeleine meio rançosa. Ah, estes anos dourados, com seus bailecos e tudo o mais, foram um porre. ("Heaven, I'm in heaven, dancing cheek to cheek...")
Festas de formatura, homens e meninos de smoking, mocinhas bem-comportadas em organza, organdi e tafetá changeant, pompons de tule com sombra cor-de-rosa.
O cheiro enjoativo de líquido de permanente permeava a década, o pano da roupa pinicava, um eterno rodopiar kitsch pelos salões incendiados de espelhos e de lustres quais Bovarys da várzea...
Nós, meninas do Sacré-Coeur éramos americanas, dançando músicas americanas com a orquestra Tabajara do Severino Araújo.
O crooner de bigodinho era americano e cantava as músicas do Sinatra em inglês. Tal e qual. A crooner de chiffon dourado também, ambos sexy, mas de um mundo boêmio, misterioso e não permitido.
Eles para lá, nós para cá. Um para lá, dois para cá, no ritmo da música. Éramos todos exilados americanos, mais ou menos felizes nos trópicos, e nem conhecíamos a Disneylândia.
Fingíamos, ah, como fingiam as mulheres dos anos 50. Nós nos sabíamos bonitas e poderosas, mas nos comportávamos como Santa Terezinha de plantão. ("Night and day, day and night...")
Nos clubes, sentávamos em mesinhas de cadeiras duras com as mães de 30 anos que cumpriam um calvário de velhas chaperones.
Os meninos encostavam-se nas paredes e nos devoravam com olhos intensos.
Tinham espinhas e as mãos suadas. Os bonitos eram um pouco burros e os inteligentes muito feios. ("I'm your big and brave and handsome Romeo.")
Vivíamos no embalo do saxofone edulcorado que prometia o céu, amor e casamento, todas tontas, amando o amor, suspirosas tias Nastácias atingidas no peito pela última seta de Cupido, sonhando com Gregory Peck, Stewart Granger e o príncipe Phillip.
A diversão máxima era o cinema. Difícil escapar de um musical, e na melhor cena do beijo Kathryn Grayson começava a cantar com sua boquinha de coração, ah, como era chata...
Respondiam em dueto Howard Keel e Mario Lanza, chatíssimos também.
Nós, as americanas do Brasil, líamos as revistas de cinema. "Photoplay", "Silver Screen" e "Motion Pictures". A "Photoplay" tinha um número especial com endereço dos artistas, e foi assim que recebi autógrafos de Elizabeth Taylor e Clark Gable.
As cartas chegavam, num prodígio dos correios, com o nome da rua errado, e Buenos Aires, Brasil. Meu coração de 13 anos parava. ("There's no business like show business, like show people, people I know".)
Passava as tardes tirando letras de música do Sinatra (a palavra mais difícil foi "sacroiliac") e Doris Day ("The very thought of you and I forget to do...").
Mantive breve correspondência com Hedda Hopper, a colunista de fofocas de Hollywood, que usava chapéus exóticos e não era a Louella Parsons. Insinuou que se hospedaria conosco se viesse ao quarto centenário de São Paulo, o que não se concretizou graças às rezas de meus pais.
Jessica Tandy não só mandou autógrafo como também uma carta gentil estranhando que tivesse uma fã em plagas tão remotas. Juntou uma foto dela muito branca, com uma enorme testa e olhos tristes.
Fui sócia do clube do fã de Jane Powell, Jeffrey Hunter, Barbara Rush, June Allyson, Walter Pidgeon, Carleton Carpenter, Pier Angeli, Debbie Reynolds. O que me valeu um vidão no quarto centenário quando estiveram todos aqui. Como conseguir ser fotografada mergulhando no mundo dos nossos ícones de adolescência? Momento supremo? Inacreditável? Telefonei para a Folha, avisei que teria trânsito livre e me arranjaram um fotógrafo de acompanhante. Tirava as fotos da Folha e as minhas. Seu nome era Pirozelli.
Eram assim os 50. Severino Araújo a todo pano regia nossas vidas. O pique do sax cortava a década, a realidade encoberta pela anáguas enormes de bordado inglês. ("I don't know if we're in a garden, or in a crowded avenue...")
Por baixo das anáguas, Grace Metallious descobria Peyton Place e o dr. Kinsey os hábitos sexuais dos americanos. Jack Kerouac já estava on the road e o anticoncepcional também. Trabalhava-se diligentemente para inventar os 60. E nem nós nem a orquestra Tabajara sabíamos de nada. ("Blue skies smiling at me, nothing but blue skies do I see...")
Música digestiva, easy listening? Só para quem não viveu os 50.

Disco: Tabajara Visita Sinatra Lançamento: Sonopress, série Anos Dourados Quanto: R$18 (o CD, em média)
e-mail: ninahort@uol.com.br



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