São Paulo, Sábado, 20 de Março de 1999
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Barba Azul é ambivalência de nosso tempo

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"Um homem se dar para uma mulher e uma mulher se dar para um homem: algo de inteiramente inatingível." Essas palavras tristes de Lukács, resenhando poemas de Bela Bálasz, aplicam-se igualmente ao libreto da ópera "O Castelo de Barba Azul", musicado em 1911 por Béla Bartók (1881-1945). Há uma diferença enorme, no entanto, entre o desconsolo do crítico e a leitura do compositor.
A diferença está na música, uma das maiores criações de um dos maiores compositores do nosso século, capaz de sugerir iluminações amorosas muito além do consolo e do desconsolo.
A história de Barba Azul é muito antiga. Aparece pela primeira vez nos "Contos da Mamãe Gansa" de Perrault, no século 17. A trama gira em torno do duque Barba Azul.
Homem rico e brutal, o duque assassina uma sucessão de esposas. Duas óperas do início do século 20 retomam a fábula em outros registros.
Na versão de Paul Dukas (1865-1935), com texto do poeta Maeterlinck, a história ganha nuances simbolistas, intimações de segredos maiores que os da interioridade. Já Bartók e Bálasz traduzem tudo para o domínio das relações entre um homem e uma mulher, alegorizadas no cenário de portas fechadas que vão se abrindo, até o ponto mais sombrio da consciência do homem, onde agora vai se perder essa mulher.
Para Bartók, a ópera abriu um campo novo de explorações, não só de técnica, mas de significados (se é que se pode separar uma coisa da outra). O contraste entre a linguagem arcaica, inspirada nas baladas populares húngaras, e as gravidades psicológicas do diálogo entre Barba Azul e Judith, tem equivalentes musicais na alteração entre música "folclórica", pentatônica (do homem) e uma arte cromática moderna (da mulher).
Mais recitada do que cantada, "O Castelo de Barba Azul" faz da língua húngara, ainda, um maravilhoso instrumento expressivo -como se ressalta nessa nova gravação, com a soprano Jessye Norman e o baixo Lászlo Polgár, acompanhados pela Orquestra Sinfônica de Chicago, sob a regência de Pierre Boulez.
A influência, na música, é uma via de duas mãos; e é surpreendente descobrir agora, em Bartók, sonoridades que ele deve a Boulez, mais do que o contrário.
A beleza controlada do episódio da sexta porta, "O Lago das Lágrimas", uma façanha de orquestração (flautas, clarinetes, harpa e celesta em arpejos e glissandos cromáticos, contra o pano de fundo trêmulo das cordas), é regida por Boulez como se fosse parte de alguma composição bem mais recente -uma composição do próprio Boulez.
O estilo "carne e osso" almejado por Bartók soa agora como um encantamento particular da música moderna, que tem na Orquestra de Chicago um intérprete sob medida. Calor frio, ou frio quente: a Orquestra de Boulez encontra, de algum modo, o equilíbrio nas ambiguidades.
Ninguém poderia prever o quanto a voz de Jessye Norman parece talhada para o papel. Seus lamentos tem a confiança de uma entrega total e a tristeza dessa mesma entrega, pressentindo a inatingibilidade. Não há vocabulário técnico para descrever as sutilezas afetivas da música; mas não é necessário vocabulário para escutar tantas ambivalências, flutuando no espaço musical e sentimental da ópera.
A voz de pedra de Lászlo Polgár recebe e rechaça as vibrações da soprano, com suas próprias cores de granito.
"Onde cabe essa história? Dentro de nós? Ou fora de nós?", pergunta o xamã húngaro, num prólogo falado. Externo e interno se confundem nesse lusco-fusco das almas. O que fica dentro e o que fica fora se cruzam, também, na dedicatória da ópera, à mulher de Bartók, com quem ele passaria o resto da vida. Que coisa estranha: dedicar à amada uma ópera sobre a perdição da mulher, nas crueldades do caráter de um homem obtuso.
Isso sugere, a seu modo, potências musicais de outra natureza. Pois é só na partitura, em momentos de adivinhação e luz, que se pode escutar uma outra música, de um outro homem (o compositor) -quase a anti-ópera de Barba Azul. Entre o texto encenado e essa música oculta, há uma distância, uma última porta cuja chave cada ouvinte precisa encontrar.
Um homem se dar para uma mulher e uma mulher se dar para um homem: esse milagre atingível fica nas mãos do acaso, e da coragem.
Invertendo sentidos, tanto quanto regimes tonais, "O Castelo de Barba Azul" é uma das grandes óperas de amor de todos os tempos, composta nos acentos dolorosamente ambivalentes do nosso próprio tempo.


Disco: O Castelo de Barba Azul, de Béla Bártok
Lançamento: CD Deutsche Grammophon
Intérpretes: Jessye Norman, László Polgár
Chicago Symphony Orchestra
Regente: Pierre Boulez
Quanto: R$ 35 (em média).



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