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Barba Azul é ambivalência de nosso tempo
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
"Um homem se dar para uma
mulher e uma mulher se dar para
um homem: algo de inteiramente
inatingível." Essas palavras tristes
de Lukács, resenhando poemas de
Bela Bálasz, aplicam-se igualmente
ao libreto da ópera "O Castelo de
Barba Azul", musicado em 1911
por Béla Bartók (1881-1945). Há
uma diferença enorme, no entanto, entre o desconsolo do crítico e a
leitura do compositor.
A diferença está na música, uma
das maiores criações de um dos
maiores compositores do nosso
século, capaz de sugerir iluminações amorosas muito além do consolo e do desconsolo.
A história de Barba Azul é muito
antiga. Aparece pela primeira vez
nos "Contos da Mamãe Gansa" de
Perrault, no século 17. A trama gira
em torno do duque Barba Azul.
Homem rico e brutal, o duque assassina uma sucessão de esposas.
Duas óperas do início do século 20
retomam a fábula em outros registros.
Na versão de Paul Dukas (1865-1935), com texto do poeta Maeterlinck, a história ganha nuances
simbolistas, intimações de segredos maiores que os da interioridade. Já Bartók e Bálasz traduzem tudo para o domínio das relações entre um homem e uma mulher, alegorizadas no cenário de portas fechadas que vão se abrindo, até o
ponto mais sombrio da consciência do homem, onde agora vai se
perder essa mulher.
Para Bartók, a ópera abriu um
campo novo de explorações, não
só de técnica, mas de significados
(se é que se pode separar uma coisa
da outra). O contraste entre a linguagem arcaica, inspirada nas baladas populares húngaras, e as gravidades psicológicas do diálogo
entre Barba Azul e Judith, tem
equivalentes musicais na alteração
entre música "folclórica", pentatônica (do homem) e uma arte cromática moderna (da mulher).
Mais recitada do que cantada, "O
Castelo de Barba Azul" faz da língua húngara, ainda, um maravilhoso instrumento expressivo -como se ressalta nessa nova gravação, com a soprano Jessye Norman
e o baixo Lászlo Polgár, acompanhados pela Orquestra Sinfônica
de Chicago, sob a regência de Pierre Boulez.
A influência, na música, é uma
via de duas mãos; e é surpreendente descobrir agora, em Bartók, sonoridades que ele deve a Boulez,
mais do que o contrário.
A beleza controlada do episódio
da sexta porta, "O Lago das Lágrimas", uma façanha de orquestração (flautas, clarinetes, harpa e celesta em arpejos e glissandos cromáticos, contra o pano de fundo
trêmulo das cordas), é regida por
Boulez como se fosse parte de alguma composição bem mais recente
-uma composição do próprio
Boulez.
O estilo "carne e osso" almejado
por Bartók soa agora como um encantamento particular da música
moderna, que tem na Orquestra de
Chicago um intérprete sob medida. Calor frio, ou frio quente: a Orquestra de Boulez encontra, de algum modo, o equilíbrio nas ambiguidades.
Ninguém poderia prever o quanto a voz de Jessye Norman parece
talhada para o papel. Seus lamentos tem a confiança de uma entrega
total e a tristeza dessa mesma entrega, pressentindo a inatingibilidade. Não há vocabulário técnico
para descrever as sutilezas afetivas
da música; mas não é necessário
vocabulário para escutar tantas
ambivalências, flutuando no espaço musical e sentimental da ópera.
A voz de pedra de Lászlo Polgár
recebe e rechaça as vibrações da
soprano, com suas próprias cores
de granito.
"Onde cabe essa história? Dentro
de nós? Ou fora de nós?", pergunta
o xamã húngaro, num prólogo falado. Externo e interno se confundem nesse lusco-fusco das almas.
O que fica dentro e o que fica fora
se cruzam, também, na dedicatória
da ópera, à mulher de Bartók, com
quem ele passaria o resto da vida.
Que coisa estranha: dedicar à amada uma ópera sobre a perdição da
mulher, nas crueldades do caráter
de um homem obtuso.
Isso sugere, a seu modo, potências musicais de outra natureza.
Pois é só na partitura, em momentos de adivinhação e luz, que se pode escutar uma outra música, de
um outro homem (o compositor)
-quase a anti-ópera de Barba
Azul. Entre o texto encenado e essa
música oculta, há uma distância,
uma última porta cuja chave cada
ouvinte precisa encontrar.
Um homem se dar para uma mulher e uma mulher se dar para um
homem: esse milagre atingível fica
nas mãos do acaso, e da coragem.
Invertendo sentidos, tanto quanto regimes tonais, "O Castelo de
Barba Azul" é uma das grandes
óperas de amor de todos os tempos, composta nos acentos dolorosamente ambivalentes do nosso
próprio tempo.
Disco: O Castelo de Barba Azul, de Béla
Bártok
Lançamento: CD Deutsche Grammophon
Intérpretes: Jessye Norman, László Polgár
Chicago Symphony Orchestra
Regente: Pierre Boulez
Quanto: R$ 35 (em média).
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