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ANÁLISE
Filme acerta ponteiros da cultura com a modernidade
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE OPINIÃO
Em meio a um comício do governador populista d. Felipe
Vieira, o "povo" é chamado a falar. Um homem surge, apresenta-se como sindicalista e começa a
discursar. Subitamente, Paulo
Martins, jornalista romântico,
cindido entre a militância e a poesia, tapa com a mão a boca do infeliz, olha para a câmera e dispara:
"Isto é o povo! Um imbecil, um
analfabeto, um despolitizado".
Uma cena como essa bastaria
para fazer de "Terra em Transe"
um filme "polêmico", como se
tornou comum classificá-lo. Em
1967, a esquerda brasileira vinha
de uma retumbante derrota, com
o golpe militar de 1964, e parte
considerável da intelectualidade
viu o filme como um desvario
anarquista, decadente e ultrajante
de um cineasta que pouco antes,
com "Deus e o Diabo na Terra do
Sol", não deixara dúvidas sobre
sua "coerência" política. No filme
anterior, de fato, era mais fácil
identificar a "mensagem", que
soava com clareza na trilha de
Sergio Ricardo: "A terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo". O fanatismo e o cangaço precisavam ser superados pela transformação social.
Em "Terra em Transe", ao contrário, a realidade se tornou polifônica, contraditória, ambígua,
estilhaçada. Em alegorias, o povo,
que com freqüência surgia na arte
politicamente correta de esquerda como uma entidade idealizada, essencialmente boa e portadora do futuro, é tratado com crueza
e ceticismo. Os políticos, conservadores ou não, são pouco confiáveis, quando não simplesmente
sórdidos e monstruosos.
Não há mocinhos. Paulo Martins é um herói dilacerado, que
descrê do poder da palavra e sente-se impotente em seu impulso
de mudar a sociedade. "A poesia e
a política são demais para um só
homem" é a frase que o define.
O que "Terra em Transe" encena é uma crise. Crise do sujeito e
da realidade política, da linguagem, do intelectual de esquerda e
do populismo no Brasil. E o faz de
uma maneira extraordinariamente poética, bela, densa, imaginosa,
moderna, pelas mãos de um cineasta de 28 anos de idade, àquela
altura já respeitado pela crítica e
por seus pares internacionais, como Godard, um dos que assinaram um pedido para que "Terra
em Transe" fosse liberado pela
censura -o que aconteceu.
Nem tudo, porém, foi rejeição.
Houve recepções calorosas e entusiasmadas. Em 67, em diversas
áreas da cultura brasileira jovens
artistas empenhavam-se na renovação de linguagens, recusando-se, como disse Caetano Veloso, a
"folclorizar o subdesenvolvimento" e a subordinar a imaginação
ao esquematismo da arte de "protesto", tão em voga à época.
Um vento cosmopolita e
"avant-garde" voltava a soprar
nas artes plásticas, no teatro e na
música popular. Nomes como
Hélio Oiticica, José Celso Martinez, Caetano Veloso e Gilberto Gil
estavam em plena sintonia com a
deflagração glauberiana. A instalação "Penetrável Tropicália", a
montagem de "O Rei da Vela" e a
apresentação de "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", tudo isso, em 67, davam forma a
uma onda que logo a seguir seria
conhecida como tropicalismo.
Uma onda que arrombou a festa,
abriu portas e -como uma "neo-antropofagia"- tratou de acertou os ponteiros da cultura brasileira com a modernidade.
Terra em Transe
Direção: Glauber Rocha
Produção: Brasil, 1967
Com: Jardel Filho, Paulo Autran
Quando: a partir de hoje no Frei Caneca Unibanco Arteplex
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