São Paulo, quarta-feira, 20 de junho de 2001

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Cineasta mergulha nas artes plásticas, com sua "Enciclopédia Associativa do Corpo Humano"

"O cinema está morrendo", diz Greenaway

Juan Esteves
O cineasta galês Peter Greenaway, 59, que tem obra de artes plásticas expostas na Bienal da Valência


CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A VALÊNCIA

O cenário é um convento do século 14. A trilha sonora, martelos e furadeiras. Um senhor esguio, de terno azul cinzento, empurra um carrinho com caixas de acrílico cheias de chupetas, canetas esferográficas e cotonetes. O nome dele é Peter Greenaway e ele está construindo um corpo.
Desta vez não há claquetes, câmeras ou ação. Um dos cineastas mais originais do século terminado, o galês de 59 anos está temporariamente no corpo a corpo com as artes plásticas. Ele não se contentou em ser apenas um dos curadores da primeira edição da Bienal de Valência. Os organizadores lhe desafiaram a criar também uma obra para a mostra e ele não tirou o corpo fora.
Foi em meio à elaboração de sua "Enciclopédia Associativa do Corpo Humano" (leia texto abaixo), feita com cem tipos de objetos, tais como os cotonetes, as chupetas e as canetas, que Greenaway se fez corpo presente para esta entrevista com a Folha.
"A arte tem discutido muito o corpo nos últimos 20 anos graças ao desejo de uma reação do homem contra a mecanização do universo. Você mesmo está usando um gravador, e não a sua cabeça, para guardar minhas respostas", brinca o cineasta.
Leia a seguir trechos da conversa na qual Greenaway fala sobre o corpo de seu trabalho, explica porque não acredita em alma ou em pecado, adianta a fisionomia de seu próximo filme e assina um atestado de óbito prévio para um corpo moribundo: o cinema.

Folha - Seus filmes sempre discutiram a relação do homem com o corpo. Em "O Cozinheiro, o Ladrão, a Mulher e Seu Amante" (1989), há um corpo sendo devorado. Em "O Livro de Cabeceira" (1995), a escrita sobre a pele humana. Qual a relação entre o corpo de seu cinema e essa mostra sobre o corpo humano que o sr. criou em Valência?
Peter Greenaway -
Como um cineasta eu sempre quis pôr o homem no centro de cada fotograma. Sempre quis colocar o corpo no miolo da minha obra, pois acredito que as religiões mudam todas as semanas, os sistemas políticos mudam a cada tarde, mas o corpo é sempre igual. É essa mesma fascinação pelo corpo que eu trouxe para cá. A diferença é que não estou brincando com projeções ou com cinema, estou jogando o jogo da museologia.

Folha - A exposição chegou a ter um nome provisório de "Corpo e Pecado". O "pecado" foi extraído mais tarde. Por quê?
Greenaway -
Fui contra. Não acredito no conceito de pecado, uma invenção do catolicismo romano para dar poder. Uma mosca não tem conhecimento de noções de pecado e culpa. Nós também somos animais. Por que deveríamos acreditar nesses conceitos? São ferramentas políticas, que podem ser mudadas. O corpo não pode, ainda que Michael Jackson acredite que sim.

Folha - E o conceito de alma? O "corpo" que o sr. elaborou para esta exposição tem alma?
Greenaway -
Eu não acredito em alma. Se você toma a história do Ocidente, verá que os antigos romanos diziam que a alma ficava na barriga. Os cristãos acreditaram que era mais em cima. Ela foi subindo até ficar sobre a cabeça. Ninguém sabe onde está, muito menos eu, que não acredito nela.

Folha - E no cinema, o sr. acredita? Ultimamente o sr. não tem filmado muito, não?
Greenaway -
Ainda tento manter o velho otimismo ingênuo que tinha com relação ao cinema. Mas devo dizer que não acredito muito nele. O cinema não cumpriu suas promessas. Ele hoje é basicamente narrativo. Se você quer jogar com histórias e narrativas, você deve ser um romancista, não um cineasta. Fazer filmes é criar ambientações, performances.

Folha - E por que o cinema tomou o rumo que tomou?
Greenaway -
A resposta é óbvia. É fácil fazer cinema assim. É o modo como os produtores estúpidos e os estúdios estúpidos o concebem. Pensam que, se há um texto, ele pode ser transformado em imagens. Creio que não vimos nenhum cinema até hoje. O que vimos foram 150 anos de textos ilustrados. Sou pessimista com o cinema atualmente. Ele é chato e moribundo. Está morrendo.

Folha - Não há nenhum salva-vidas por perto?
Greenaway -
Não conheço nenhum cineasta radical e interessante desde a morte de [Rainer Werner] Fassbinder [1945-1982]. Claro que o cinema não se afogará completamente. Envolve muito dinheiro, e Hollywood não deixaria isso acabar. O cinema capta a imaginação dos jovens machos de 18 a 25 anos. Mas para o resto não é mágico. Os que podiam repensar o cinema foram a outro lugar.

Folha - Como para as exposições, por exemplo?
Greenaway -
Não falo de mim. Veja Bill Viola (videoartista norte-americano). Ele vale pelo menos dez Scorseses. Scorsese é um cineasta muito, muito antiquado. É considerado pela indústria cinematográfica o diretor mais influente, mas é muito chato.
Ele faz filmes cristãos, com conceitos como culpa. Usa uma noção psicanalítica contemporânea à que Hitchcock desenvolveu em "Psicose" (1960), ultrapassada. Faz filmes com início, meio e fim, ou seja, algo muito mais atrasado que o "Ulisses", de James Joyce, de 1922. Scorsese ainda está fazendo versões ilustradas de formatos narrativos do século 19.

Folha - E que tipo de cinema o sr. está preparando agora?
Greenaway -
Tenho um longo projeto de um filme de oito horas. Não posso esperar que as pessoas fiquem sentadas tanto tempo, então dividi o trabalho em quatro sessões de duas horas. Mas não é como "Guerra nas Estrelas" 1, 2 e 3. É contínuo. É um longo filme. E não é só. O projeto, chamado "A Mala de Tulse Luper", inclui um CD-ROM, um DVD, dois sites, livros e peças de teatro. Resumidamente, é sobre a descoberta do urânio. O urânio criou a história do século que acabou.

Folha - Como?
Greenaway -
Hiroshima e Nagasaki, a primeira vez que, com a bomba de urânio, o homem se colocou realmente em uma ilha, mostrou o poder de destruir tudo: o começo do fim. Sou interessado em numerologia e usei o número químico do urânio, 92, como base. Serão 92 eventos e 92 atores. É interativo. Cada um poderá, pela internet, criar os seus enredos. Contrário às narrativas, criei uma meganarrativa.


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