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Cineasta mergulha nas artes plásticas, com sua "Enciclopédia Associativa do Corpo Humano"
"O cinema está morrendo", diz Greenaway
Juan Esteves
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O cineasta galês Peter Greenaway, 59, que tem obra de artes plásticas expostas na Bienal da Valência |
CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A VALÊNCIA
O cenário é um convento do século 14. A trilha sonora, martelos
e furadeiras. Um senhor esguio,
de terno azul cinzento, empurra
um carrinho com caixas de acrílico cheias de chupetas, canetas esferográficas e cotonetes. O nome
dele é Peter Greenaway e ele está
construindo um corpo.
Desta vez não há claquetes, câmeras ou ação. Um dos cineastas
mais originais do século terminado, o galês de 59 anos está temporariamente no corpo a corpo com
as artes plásticas. Ele não se contentou em ser apenas um dos curadores da primeira edição da
Bienal de Valência. Os organizadores lhe desafiaram a criar também uma obra para a mostra e ele
não tirou o corpo fora.
Foi em meio à elaboração de sua
"Enciclopédia Associativa do
Corpo Humano" (leia texto abaixo), feita com cem tipos de objetos, tais como os cotonetes, as
chupetas e as canetas, que Greenaway se fez corpo presente para
esta entrevista com a Folha.
"A arte tem discutido muito o
corpo nos últimos 20 anos graças
ao desejo de uma reação do homem contra a mecanização do
universo. Você mesmo está usando um gravador, e não a sua cabeça, para guardar minhas respostas", brinca o cineasta.
Leia a seguir trechos da conversa na qual Greenaway fala sobre o
corpo de seu trabalho, explica
porque não acredita em alma ou
em pecado, adianta a fisionomia
de seu próximo filme e assina um
atestado de óbito prévio para um
corpo moribundo: o cinema.
Folha - Seus filmes sempre discutiram a relação do homem com o
corpo. Em "O Cozinheiro, o Ladrão,
a Mulher e Seu Amante" (1989), há
um corpo sendo devorado. Em "O
Livro de Cabeceira" (1995), a escrita sobre a pele humana. Qual a relação entre o corpo de seu cinema e
essa mostra sobre o corpo humano
que o sr. criou em Valência?
Peter Greenaway - Como um cineasta eu sempre quis pôr o homem no centro de cada fotograma. Sempre quis colocar o corpo
no miolo da minha obra, pois
acredito que as religiões mudam
todas as semanas, os sistemas políticos mudam a cada tarde, mas o
corpo é sempre igual. É essa mesma fascinação pelo corpo que eu
trouxe para cá. A diferença é que
não estou brincando com projeções ou com cinema, estou jogando o jogo da museologia.
Folha - A exposição chegou a ter
um nome provisório de "Corpo e
Pecado". O "pecado" foi extraído
mais tarde. Por quê?
Greenaway - Fui contra. Não
acredito no conceito de pecado,
uma invenção do catolicismo romano para dar poder. Uma mosca não tem conhecimento de noções de pecado e culpa. Nós também somos animais. Por que deveríamos acreditar nesses conceitos? São ferramentas políticas,
que podem ser mudadas. O corpo
não pode, ainda que Michael
Jackson acredite que sim.
Folha - E o conceito de alma? O
"corpo" que o sr. elaborou para esta exposição tem alma?
Greenaway - Eu não acredito em
alma. Se você toma a história do
Ocidente, verá que os antigos romanos diziam que a alma ficava
na barriga. Os cristãos acreditaram que era mais em cima. Ela foi
subindo até ficar sobre a cabeça.
Ninguém sabe onde está, muito
menos eu, que não acredito nela.
Folha - E no cinema, o sr. acredita? Ultimamente o sr. não tem filmado muito, não?
Greenaway - Ainda tento manter
o velho otimismo ingênuo que tinha com relação ao cinema. Mas
devo dizer que não acredito muito nele. O cinema não cumpriu
suas promessas. Ele hoje é basicamente narrativo. Se você quer jogar com histórias e narrativas, você deve ser um romancista, não
um cineasta. Fazer filmes é criar
ambientações, performances.
Folha - E por que o cinema tomou
o rumo que tomou?
Greenaway - A resposta é óbvia.
É fácil fazer cinema assim. É o
modo como os produtores estúpidos e os estúdios estúpidos o
concebem. Pensam que, se há um
texto, ele pode ser transformado
em imagens. Creio que não vimos
nenhum cinema até hoje. O que
vimos foram 150 anos de textos
ilustrados. Sou pessimista com o
cinema atualmente. Ele é chato e
moribundo. Está morrendo.
Folha - Não há nenhum salva-vidas por perto?
Greenaway - Não conheço nenhum cineasta radical e interessante desde a morte de [Rainer
Werner] Fassbinder [1945-1982].
Claro que o cinema não se afogará
completamente. Envolve muito
dinheiro, e Hollywood não deixaria isso acabar. O cinema capta a
imaginação dos jovens machos de
18 a 25 anos. Mas para o resto não
é mágico. Os que podiam repensar o cinema foram a outro lugar.
Folha - Como para as exposições,
por exemplo?
Greenaway - Não falo de mim.
Veja Bill Viola (videoartista norte-americano). Ele vale pelo menos dez Scorseses. Scorsese é um
cineasta muito, muito antiquado.
É considerado pela indústria cinematográfica o diretor mais influente, mas é muito chato.
Ele faz filmes cristãos, com conceitos como culpa. Usa uma noção psicanalítica contemporânea
à que Hitchcock desenvolveu em
"Psicose" (1960), ultrapassada.
Faz filmes com início, meio e fim,
ou seja, algo muito mais atrasado
que o "Ulisses", de James Joyce,
de 1922. Scorsese ainda está fazendo versões ilustradas de formatos
narrativos do século 19.
Folha - E que tipo de cinema o sr.
está preparando agora?
Greenaway - Tenho um longo
projeto de um filme de oito horas.
Não posso esperar que as pessoas
fiquem sentadas tanto tempo, então dividi o trabalho em quatro
sessões de duas horas. Mas não é
como "Guerra nas Estrelas" 1, 2 e
3. É contínuo. É um longo filme. E
não é só. O projeto, chamado "A
Mala de Tulse Luper", inclui um
CD-ROM, um DVD, dois sites, livros e peças de teatro. Resumidamente, é sobre a descoberta do
urânio. O urânio criou a história
do século que acabou.
Folha - Como?
Greenaway - Hiroshima e Nagasaki, a primeira vez que, com a
bomba de urânio, o homem se colocou realmente em uma ilha,
mostrou o poder de destruir tudo:
o começo do fim. Sou interessado
em numerologia e usei o número
químico do urânio, 92, como base. Serão 92 eventos e 92 atores. É
interativo. Cada um poderá, pela
internet, criar os seus enredos.
Contrário às narrativas, criei uma
meganarrativa.
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