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NELSON ASCHER
A religião no século 21
Desde que, já antes do Iluminismo, alguns pensadores buscaram olhar de fora não
tal ou qual confissão, mas a religião como um todo, generalizou-se, pelo menos entre os ocidentais
cultos e progressistas, a idéia de
que a crença em Deus, em deuses
ou no sobrenatural tinha os dias
contados. Caracterizando o que
muitos chamavam de "infância
da humanidade", identificada
por outros tantos como instrumento de dominação, reduzida
por não poucos à categoria de superstição ou crendice ignorante, a
religião seria superada e finalmente posta de lado pelo avanço
da ciência, pelo progresso material, pela educação universal, pela
liberdade política, em suma, pelo
triunfo da razão.
Como os últimos cem anos ilustram, não foi bem assim que as
coisas se desenrolaram, e inclusive sistemas inteiros que combatiam abertamente a fé ou tentaram canalizar suas energias e
paixões para o culto do líder, do
partido, da raça ou da pátria acabaram desabando ignominiosamente sob bombas inimigas ou
em meio a contradições internas,
enquanto, em seus domínios, as
religiões resistiram e prosperaram. Para confundir ainda mais
a situação, a humanidade acordou no início do século 21, décadas após astronautas passearem
na Lua ou médicos transplantarem corações, para constatar que,
quisesse ou não, estava envolvida
numa verdadeira guerra religiosa
de dimensões globais.
Convém, portanto, admitir que,
como a crise terminal do capitalismo e a vitória inevitável do socialismo, como a decadência da
superpotência americana e a ascensão, em seu lugar, dos Estados
Unidos da Europa, como a unificação dos países árabes numa
grande nação que apagaria Israel
do mapa, como a abolição das
guerras e o desabrochar da paz
perpétua, o eclipse da religião e a
"morte de Deus" são previsões
que a história posterior tratou de
desmentir. Há apenas uma parte
do mundo onde a fé continua a
recuar: a Europa. E, mesmo lá, a
decadência é a do cristianismo local, pois o islamismo trazido pelos
imigrantes se enraíza e cresce.
De nada serviria tal admissão,
porém, caso não fosse acompanhada de indagações acerca dos
conceitos e análises que resultaram nesses prognósticos equivocados. A contraposição da ciência
à religião, embora parecesse evidente, estava entre as mais enganosas, uma vez que cientistas, tão
humanos, demasiado humanos,
quanto os leigos, revelaram-se capazes não só de aderir a guerras
santas e ao extermínio de raças,
como de partir o átomo para auxiliá-los. A educação e a disseminação da informação podem ter
levado ao questionamento desta
ou daquela autoridade religiosa,
mas não reduziram a necessidade
de seguir uma qualquer. E a melhor conseqüência da liberdade
política, onde quer que tenha se
instaurado, foi o rompimento dos
monopólios confessionais.
O re-exame da questão ocupará
por muito tempo os futuros filósofos ou antropólogos, historiadores
ou psicólogos, e Deus sabe a que
conclusões chegarão. A nós, pobres mortais neste vale de lágrimas, cabe-nos descobrir como é
que as miríades de religiões existentes conviverão sem atrito excessivo num mundo globalizado,
um planeta no qual seus praticantes estarão em contato prolongado, porque o que se tem visto
até o momento está longe de induzir ao otimismo.
Os europeus pós-modernos do
Reino Unido ou dos Países Baixos
criaram para si o mito de que, se
fossem tolerantes e não se metessem na vida alheia, os recém-chegados adotariam aos poucos a tolerância dos povos que os acolhiam, e todos viveriam felizes para sempre. Britânicos e holandeses se iludiram pensando que assuntos tais eram, no fundo, tão
desimportantes para o resto da
humanidade quanto julgavam
ser para eles. Enganaram-se, e de
várias maneiras, sobretudo por
terem se esquecido de que a trégua religiosa em suas terras decorrera do sangrento empate técnico no conflito continental entre
católicos e protestantes. Tampouco levaram em consideração a
correlação que se verifica entre fé
e fertilidade. Confiando no futuro, os religiosos se reproduzem
mais intensamente que ateus ou
agnósticos, de modo que a demografia favorece a religiosidade (e
vice-versa).
Conflitos religiosos, no entanto,
não são uma constante histórica.
Os romanos não conquistaram a
bacia do Mediterrâneo nem os
mongóis o grosso da Eurásia para
imporem aos habitantes as suas
crenças. Se os astecas guerreavam
por motivos religiosos, não era
porque desejassem converter seus
prisioneiros: estes se destinavam a
ser sacrificados no topo das pirâmides e, em seguida, comidos. O
budismo, talvez a primeira das
religiões com ambições universalistas, expandiu-se em geral sem
violência e, em inúmeros lugares,
regrediu ou desapareceu também
pacificamente.
Foram o cristianismo e o islã
que associaram mais intimamente a conquista territorial à conversão forçada, submissão ou destruição dos povos derrotados. Se
ambos nem sempre agem agora
como na época da Jihad original
ou das Cruzadas, nem por isso
deixaram de recorrer a métodos
mais modernos. Meios de comunicação e imigração em massa, a
indústria da cultura e os petrodólares são recursos cada vez mais
usados. E há outros que, se vistos
sob o prisma das práticas comerciais, seriam qualificados de concorrência desleal, como a subvenção estatal, os mercados fechados
etc.
As religiões estão aqui para ficar e competir entre si. Sua competição só não se tornará sangrenta caso, como até certo ponto
tem sucedido no mundo do comércio internacional, concordem
com/ou lhes sejam impostas certas regras, regras transparentes
que valham para todas elas e em
toda parte.
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