São Paulo, segunda-feira, 20 de junho de 2005

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NELSON ASCHER

A religião no século 21

Desde que, já antes do Iluminismo, alguns pensadores buscaram olhar de fora não tal ou qual confissão, mas a religião como um todo, generalizou-se, pelo menos entre os ocidentais cultos e progressistas, a idéia de que a crença em Deus, em deuses ou no sobrenatural tinha os dias contados. Caracterizando o que muitos chamavam de "infância da humanidade", identificada por outros tantos como instrumento de dominação, reduzida por não poucos à categoria de superstição ou crendice ignorante, a religião seria superada e finalmente posta de lado pelo avanço da ciência, pelo progresso material, pela educação universal, pela liberdade política, em suma, pelo triunfo da razão.
Como os últimos cem anos ilustram, não foi bem assim que as coisas se desenrolaram, e inclusive sistemas inteiros que combatiam abertamente a fé ou tentaram canalizar suas energias e paixões para o culto do líder, do partido, da raça ou da pátria acabaram desabando ignominiosamente sob bombas inimigas ou em meio a contradições internas, enquanto, em seus domínios, as religiões resistiram e prosperaram. Para confundir ainda mais a situação, a humanidade acordou no início do século 21, décadas após astronautas passearem na Lua ou médicos transplantarem corações, para constatar que, quisesse ou não, estava envolvida numa verdadeira guerra religiosa de dimensões globais.
Convém, portanto, admitir que, como a crise terminal do capitalismo e a vitória inevitável do socialismo, como a decadência da superpotência americana e a ascensão, em seu lugar, dos Estados Unidos da Europa, como a unificação dos países árabes numa grande nação que apagaria Israel do mapa, como a abolição das guerras e o desabrochar da paz perpétua, o eclipse da religião e a "morte de Deus" são previsões que a história posterior tratou de desmentir. Há apenas uma parte do mundo onde a fé continua a recuar: a Europa. E, mesmo lá, a decadência é a do cristianismo local, pois o islamismo trazido pelos imigrantes se enraíza e cresce.
De nada serviria tal admissão, porém, caso não fosse acompanhada de indagações acerca dos conceitos e análises que resultaram nesses prognósticos equivocados. A contraposição da ciência à religião, embora parecesse evidente, estava entre as mais enganosas, uma vez que cientistas, tão humanos, demasiado humanos, quanto os leigos, revelaram-se capazes não só de aderir a guerras santas e ao extermínio de raças, como de partir o átomo para auxiliá-los. A educação e a disseminação da informação podem ter levado ao questionamento desta ou daquela autoridade religiosa, mas não reduziram a necessidade de seguir uma qualquer. E a melhor conseqüência da liberdade política, onde quer que tenha se instaurado, foi o rompimento dos monopólios confessionais.
O re-exame da questão ocupará por muito tempo os futuros filósofos ou antropólogos, historiadores ou psicólogos, e Deus sabe a que conclusões chegarão. A nós, pobres mortais neste vale de lágrimas, cabe-nos descobrir como é que as miríades de religiões existentes conviverão sem atrito excessivo num mundo globalizado, um planeta no qual seus praticantes estarão em contato prolongado, porque o que se tem visto até o momento está longe de induzir ao otimismo.
Os europeus pós-modernos do Reino Unido ou dos Países Baixos criaram para si o mito de que, se fossem tolerantes e não se metessem na vida alheia, os recém-chegados adotariam aos poucos a tolerância dos povos que os acolhiam, e todos viveriam felizes para sempre. Britânicos e holandeses se iludiram pensando que assuntos tais eram, no fundo, tão desimportantes para o resto da humanidade quanto julgavam ser para eles. Enganaram-se, e de várias maneiras, sobretudo por terem se esquecido de que a trégua religiosa em suas terras decorrera do sangrento empate técnico no conflito continental entre católicos e protestantes. Tampouco levaram em consideração a correlação que se verifica entre fé e fertilidade. Confiando no futuro, os religiosos se reproduzem mais intensamente que ateus ou agnósticos, de modo que a demografia favorece a religiosidade (e vice-versa).
Conflitos religiosos, no entanto, não são uma constante histórica. Os romanos não conquistaram a bacia do Mediterrâneo nem os mongóis o grosso da Eurásia para imporem aos habitantes as suas crenças. Se os astecas guerreavam por motivos religiosos, não era porque desejassem converter seus prisioneiros: estes se destinavam a ser sacrificados no topo das pirâmides e, em seguida, comidos. O budismo, talvez a primeira das religiões com ambições universalistas, expandiu-se em geral sem violência e, em inúmeros lugares, regrediu ou desapareceu também pacificamente.
Foram o cristianismo e o islã que associaram mais intimamente a conquista territorial à conversão forçada, submissão ou destruição dos povos derrotados. Se ambos nem sempre agem agora como na época da Jihad original ou das Cruzadas, nem por isso deixaram de recorrer a métodos mais modernos. Meios de comunicação e imigração em massa, a indústria da cultura e os petrodólares são recursos cada vez mais usados. E há outros que, se vistos sob o prisma das práticas comerciais, seriam qualificados de concorrência desleal, como a subvenção estatal, os mercados fechados etc.
As religiões estão aqui para ficar e competir entre si. Sua competição só não se tornará sangrenta caso, como até certo ponto tem sucedido no mundo do comércio internacional, concordem com/ou lhes sejam impostas certas regras, regras transparentes que valham para todas elas e em toda parte.


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