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ANÁLISE
Comicidade disseca entranhas corrompidas do país
NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"O humorista é o último
dos homens, um ser à
parte, um tipo que não é chamado
para congressos, não é eleito para
academias, não está alistado entre
os cidadãos úteis da República,
não planta, não colhe, não estabelece regras de conceito ou de comportamento." Essa é a opinião de
um humorista consumado e consagrado, Millôr Fernandes, apesar
do seu tom deveras pessimista. A
crer nele, quem poderia jamais levar um humorista a sério?
Elias Thomé Saliba, num estudo
erudito, sensível e divertido, expôs a profunda seriedade que lateja em todo gesto cômico, da piada à paródia, do chiste à charada,
da chufa à galhofa, do livro e do
jornal ao teatro de revista. A obra
se chama "Raízes do Riso". O título enfatiza as raízes, mas pode crer
que lá estão também o tronco, as
ramagens, as flores e os frutos.
Um livro cheio de revelações e
surpresas hilariantes a cada página. Mas sobretudo muito sério.
Concentrado na Belle Époque, o
período, grosso modo, entre as
duas últimas décadas do século 19
e as duas primeiras do 20, observa
o momento decisivo em que um
amplo conjunto de mudanças
tecnológicas deu origem ao mundo moderno. Esse processo ultra-rápido de transformações abalou
as estruturas da ordem social,
rompendo os valores, tornando
obsoletos os modos de vida e suscitando o anseio pelo novo.
Nesse ambiente de instabilidade, o humor assume papel decisivo. Tanto incita o desprendimento em relação às idéias recebidas e
aos valores consagrados quanto
decompõe as hierarquias, corrói
as certezas e suspende os juízos.
Cumpre uma função democrática
e emancipadora. Não por acaso,
muitas das inteligências mais radicais desse período se puseram a
cogitar e teorizar sobre o significado do humor. Gente do gabarito de Henry Bergson, Freud, Pirandello, Brecht e Ludwig Wittgenstein. Mais sério, impossível.
No Brasil, esse período corresponde à passagem da sociedade
escravista para o trabalho assalariado. Uma crise histórica de amplas proporções que reconfigurou
o país, lançando as bases de uma
modernidade, a qual porém nunca se consolidou por aqui. Engastada entre o peso de um passado
do qual nunca se livrou e os impulsos de uma modernidade que
nunca assimilou por inteiro, a nação se tornou presa fácil de uma
horda implacável de pândegos,
estróinas e debochados, algozes
das elites e heróis aclamados do
populacho. Incapaz de definir sua
identidade, consolidar instituições ou projetar o futuro, o Brasil
se tornou, na expressão genial do
profeta José Simão, colunista da
Folha, "o país da piada pronta".
Mas o macaco não está sozinho,
toda uma legião de facetos, bufões, chocarreiros, pacholas, chacoteiros e farsolas desfilam impávidos e impunes pelas páginas repletas de versos desaforados e
ilustrações hilárias. Trata-se aqui
da gaia ciência. A galhofa é a tesoura, e o riso, o bisturi, que dissecam as entranhas corrompidas do
país. Ou, como diria outro filósofo da pilhéria, o imortal barão de
Itararé, "a França teve um Mirabeau, mas é no Brasil que se passam as coisas mais mirabolantes".
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura da USP e autor de "Pindorama Revisitada" (Fundação Peirópolis)
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