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WALTER SALLES
"Il Sorpasso" ou "Aquele que Sabe Viver"
Um amigo abriu a janela
do hotel onde está em Buenos Aires e deu de cara com o cemitério da Recoleta, do qual Borges falava tanto. E pensou em voz
alta: "Tanto trabalho para acabar aí".
No rádio, em sentido contrário,
uma nova música do Red Hot
Chili Peppers garante que "we're
gonna live forever", vamos todos
viver para sempre. Certo. Olhando em volta e, sobretudo a partir
do Brasil, tem-se exatamente a
sensação oposta. E, agora que a
vitória na Ásia já foi devidamente decantada, fica claro que não
há exatamente razões para festejos.
Revirando os jornais à cata de
uma boa notícia, encontra-se
alianças espúrias, tiroteios, balas
perdidas, a miséria crescente na
América Latina. Na parte internacional, descubro que, da inseminação artificial de uma mulher
e seu marido brancos, nasceram
gêmeos negros na Inglaterra. É a
única notícia da semana que me
traz alguma esperança.
Divido um segredo com o leitor
dessas mal traçadas. Toda vez em
que me sinto meio deprimido com
a realidade cotidiana, recorro a
um remédio infalível. Ligo o vídeo e revejo "Il Sorpasso", título
que foi (mal) traduzido no Brasil
por "Aquele que Sabe Viver". O
filme é uma tragicomédia extraordinária de Dino Risi, diretor
italiano que será homenageado
com uma retrospectiva no próximo Festival de Veneza.
Não sei se são o ótimo roteiro escrito em colaboração com Ettore
Scola há exatos 40 anos, as atuações excepcionais de Vittorio
Gassman e Jean-Louis Trintignant ou a direção inspirada de
Risi que garantem a sobrevivência desse filme, de uma modernidade impressionante. Provavelmente todas as coisas juntas.
Em italiano, "Il Sorpasso" significa "A Ultrapassagem". O título
contém o filme como um todo.
Tudo no filme de Risi tem a ver
com a idéia de ultrapassar, superar os dogmas da Itália do início
dos anos 60, a da Dolce Vita.
Gassman vive Bruno, um charlatão machista e seguro de si,
quadragenário que manteve um
pé na adolescência. Trintignant
interpreta Roberto, um estudante
tímido, de uma seriedade doentia. Tudo os separa, o que torna o
confronto entre os dois divertidíssimo. Bruno é irreflexivo e consumista, apaixonado por velocidade e carros conversíveis. Roberto é
cartesiano, mal sabe dirigir, desconhece a moda e as danças do
momento. O primeiro tenta ser
desesperadamente moderno, o segundo parece fora de sintonia
com a superficialidade de seu
tempo.
Bruno e Roberto se encontram
por acaso num dia de verão em
Roma. O primeiro convence o segundo a acompanhá-lo em uma
viagem através da Itália. O objetivo da empreitada, segundo Bruno, é nobre: conquistar mulheres
e viver emoções imediatas. Começa um inesperado percurso iniciático, uma incursão em um país
onde o bem-estar é apenas aparente.
Agudo crítico social, Risi salpica
essa pequena odisséia de encontros inesperados, que trazem um
"malaise" crescente à excursão.
Roberto percebe que nem tudo
vai bem naquele país idealizado,
mas não deixa de se fascinar pela
extraordinária vitalidade e canastrice de Bruno.
A injeção de realidade se mescla
a cenas hilariantes. Como esta
que se tornou um clássico: exímio
dançarino, Bruno chama uma
moça que não conhece para bailar. Dançam coladinho. Sentindo
a protuberância entre as pernas
de Bruno, a moça não se contém e
exclama: "Ulala". E Bruno responde: "Modestamente"...
Nada acaba bem nesse país de
mentirinha. E Dino Risi acaba
desvendando um país que muitos
não querem ver, com a precisão
de médico cirurgião que ele foi
antes de se tornar cineasta. Mas
se o final de "Il Sorpasso" não é
nada otimista, o que torna o filme
tão atraente?
Talvez a sensação de que a sátira e o humor são instrumentos
extraordinários para colocar a nu
uma sociedade. E que, por pior
que andem as coisas, ainda é possível sorrir um pouco e tentar
avançar.
P.S.: No fechamento desse texto,
recebo as fotografias de "Meninas
do Brasil", livro que a documentarista Mari Stockler acaba de
publicar. São imagens de jovens
meninas das periferias e dos morros brasileiros, feitas com uma pequena câmera portátil. São lábios
roxos, olhares furtivos, corpos
mestiçados, meninas -donas de
si, que se revelam de forma inesperada. Como se a distância entre
a fotógrafa e as pessoas que ela elege retratar praticamente inexistisse. Há uma implosão do quadro, uma radicalidade incomum nos cortes. Aquilo que não
vemos é tão importante quanto aquilo que vemos. Vale a pena conferir.
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