São Paulo, sábado, 20 de julho de 2002

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WALTER SALLES

"Il Sorpasso" ou "Aquele que Sabe Viver"

Um amigo abriu a janela do hotel onde está em Buenos Aires e deu de cara com o cemitério da Recoleta, do qual Borges falava tanto. E pensou em voz alta: "Tanto trabalho para acabar aí".
No rádio, em sentido contrário, uma nova música do Red Hot Chili Peppers garante que "we're gonna live forever", vamos todos viver para sempre. Certo. Olhando em volta e, sobretudo a partir do Brasil, tem-se exatamente a sensação oposta. E, agora que a vitória na Ásia já foi devidamente decantada, fica claro que não há exatamente razões para festejos.
Revirando os jornais à cata de uma boa notícia, encontra-se alianças espúrias, tiroteios, balas perdidas, a miséria crescente na América Latina. Na parte internacional, descubro que, da inseminação artificial de uma mulher e seu marido brancos, nasceram gêmeos negros na Inglaterra. É a única notícia da semana que me traz alguma esperança.
Divido um segredo com o leitor dessas mal traçadas. Toda vez em que me sinto meio deprimido com a realidade cotidiana, recorro a um remédio infalível. Ligo o vídeo e revejo "Il Sorpasso", título que foi (mal) traduzido no Brasil por "Aquele que Sabe Viver". O filme é uma tragicomédia extraordinária de Dino Risi, diretor italiano que será homenageado com uma retrospectiva no próximo Festival de Veneza.
Não sei se são o ótimo roteiro escrito em colaboração com Ettore Scola há exatos 40 anos, as atuações excepcionais de Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant ou a direção inspirada de Risi que garantem a sobrevivência desse filme, de uma modernidade impressionante. Provavelmente todas as coisas juntas.
Em italiano, "Il Sorpasso" significa "A Ultrapassagem". O título contém o filme como um todo. Tudo no filme de Risi tem a ver com a idéia de ultrapassar, superar os dogmas da Itália do início dos anos 60, a da Dolce Vita.
Gassman vive Bruno, um charlatão machista e seguro de si, quadragenário que manteve um pé na adolescência. Trintignant interpreta Roberto, um estudante tímido, de uma seriedade doentia. Tudo os separa, o que torna o confronto entre os dois divertidíssimo. Bruno é irreflexivo e consumista, apaixonado por velocidade e carros conversíveis. Roberto é cartesiano, mal sabe dirigir, desconhece a moda e as danças do momento. O primeiro tenta ser desesperadamente moderno, o segundo parece fora de sintonia com a superficialidade de seu tempo.
Bruno e Roberto se encontram por acaso num dia de verão em Roma. O primeiro convence o segundo a acompanhá-lo em uma viagem através da Itália. O objetivo da empreitada, segundo Bruno, é nobre: conquistar mulheres e viver emoções imediatas. Começa um inesperado percurso iniciático, uma incursão em um país onde o bem-estar é apenas aparente.
Agudo crítico social, Risi salpica essa pequena odisséia de encontros inesperados, que trazem um "malaise" crescente à excursão. Roberto percebe que nem tudo vai bem naquele país idealizado, mas não deixa de se fascinar pela extraordinária vitalidade e canastrice de Bruno.
A injeção de realidade se mescla a cenas hilariantes. Como esta que se tornou um clássico: exímio dançarino, Bruno chama uma moça que não conhece para bailar. Dançam coladinho. Sentindo a protuberância entre as pernas de Bruno, a moça não se contém e exclama: "Ulala". E Bruno responde: "Modestamente"...
Nada acaba bem nesse país de mentirinha. E Dino Risi acaba desvendando um país que muitos não querem ver, com a precisão de médico cirurgião que ele foi antes de se tornar cineasta. Mas se o final de "Il Sorpasso" não é nada otimista, o que torna o filme tão atraente?
Talvez a sensação de que a sátira e o humor são instrumentos extraordinários para colocar a nu uma sociedade. E que, por pior que andem as coisas, ainda é possível sorrir um pouco e tentar avançar.

P.S.: No fechamento desse texto, recebo as fotografias de "Meninas do Brasil", livro que a documentarista Mari Stockler acaba de publicar. São imagens de jovens meninas das periferias e dos morros brasileiros, feitas com uma pequena câmera portátil. São lábios roxos, olhares furtivos, corpos mestiçados, meninas -donas de si, que se revelam de forma inesperada. Como se a distância entre a fotógrafa e as pessoas que ela elege retratar praticamente inexistisse. Há uma implosão do quadro, uma radicalidade incomum nos cortes. Aquilo que não vemos é tão importante quanto aquilo que vemos. Vale a pena conferir.



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