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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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CINEMA/ARTIGO

Paixão individual e paixões coletivas

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O extraordinário filme de Eric Rohmer "A Inglesa e o Duque" pode ser visto de três maneiras básicas interligadas: como solução estética; como relação amorosa e de divergências políticas entre os dois personagens centrais; como versão da história da Revolução Francesa.
A solução estética deixou de lado uma possível tentativa realista de reconstrução de cidades e caminhos da França, no tempo da Revolução. A alternativa consistiu em construir cenários de fundo pintado, com base no traçado de Paris e outros ambientes da época, aí inserindo, em primeiro plano, personagens da vida real. Os dois planos -o do "décor" fixo e o dos atores que se movimentam- nos introduzem a um tempo e uma atmosfera do passado como poucas vezes se logrou obter no cinema.
Com extrema sutileza, Rohmer evita também, quase sempre, as cenas de impacto pelo horror. Excelente exemplo, a execução de Luís 16 é entrevista a longa distância, não por nós espectadores, mas por dois aflitos personagens, sob um céu de chumbo, separados do local por um extenso campo verde e ralo, visto do alto.
A paixão amorosa, convertida em afeição mútua, envolve duas pessoas não só de opiniões como de temperamentos diferentes. De um lado, Grace Elliot, aristocrata escocesa que vive na França, no tempo da Revolução, identificada com a monarquia, admiradora do rei Luís 16 e de Maria Antonieta. De outro, Felipe, duque de Orleans, que se denominou, não por acaso, Felipe Egalité, no curso dos episódios revolucionários. Primo de Luís 16, a quem odeia, o duque é atraído pelas idéias iluministas, aproximando-se da monarquia constitucional.
Elliot defende seus pontos de vista e age em função deles, com absoluta convicção. Felipe oscila, tratando de se identificar com os princípios da Nação, temeroso, ao mesmo tempo, dos excessos revolucionários. Mas ambos acabam se aproximando, pela força da relação afetiva e pela sensação, que domina também o espectador, de que a torrente dos fatos, na dimensão coletiva, sobrepõe-se às suas alternativas pessoais.
O terceiro aspecto do filme é a História, ou melhor, a versão que apresenta da História. Tudo se baseia no diário de Grace Elliot, iniciado precisamente a 14 de julho de 1789, terminando anos depois, antes de ela ser libertada da prisão, após a queda de Robespierre. A linha do diário reflete a visão aristocrática da autora e a partir daí nasce a questão interpretativa.
Marco de abertura de toda uma época, a Revolução Francesa despertou interpretações não só diversas como conflitantes. As versões foram mais ou menos prestigiosas, muito em função da época em que surgiram: há a versão moderada dos girondinos, cara aos círculos liberais, valorizando a figura de Danton; há a versão jacobina, que o Partido Comunista francês e outras correntes encamparam, colocando no centro do palco Marat e principalmente Robespierre, o incorruptível; há a versão da esquerda trotskista, que privilegia o igualitarismo de uma facção dos "sans-culottes", na qual Robespierre figura como carrasco. Há ainda uma interpretação mais recente, vejam-se os trabalhos de François Furet -que se concentra como explicação na linguagem revolucionária e coloca os conflitos de classe em distante segundo plano.
Mas falta mencionar outra visão, a monarquista, de que Elliot é um precioso exemplo, como contemporânea dos acontecimentos. O filme de Rohmer baseia-se nessa versão e poderia ser tomado como uma obra "reacionária", como vem acontecendo em alguns meios. Hoje, porém, depois dos horrores associados às grandes revoluções, o Terror de 1793-1794 na França, os extermínios de Stálin etc., podemos encarar os mitos revolucionários com maior espírito crítico e menor comprometimento.
Não é um ganho menor dessa perspectiva que ela nos possibilite fruir a riqueza de obras de arte controvertidas e, sem viseiras, abrir uma janela para as complexidades da História.


Boris Fausto, 72, é historiador e autor de "A Revolução de 30 - Historiografia e História", entre outros livros


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