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Das câmaras de gás à explosão do shopping
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
A morte anunciada das duas
lésbicas da novela "Torre de
Babel" aconteceu, finalmente.
O autor aproveitou a explosão
do shopping center para mandar pelos ares o jovem drogado, que, em outras circunstâncias, deveria morrer de overdose.
Confesso que ouvi a explosão
na minha sala, conferi os efeitos especiais e me senti um
pouco derrotado. A idéia de
colocar na trama duas lésbicas
era legítima, como era e são legítimas quaisquer invenções
de um dramaturgo. Se quisesse
matá-las, estaria ao lado dele
contra todas as investidas do
politicamente correto, em nome da liberdade de expressão,
do direito do autor conduzir
sua história como bem quiser.
O diabo é que as lésbicas não
morreram por uma necessidade intrínseca da história. Morreram porque os espectadores
não estavam aceitando a trama com o entusiasmo necessário para manter o nível de audiência alto e todas as vantagens comerciais decorrentes
disso.
O argumento de pesquisar a
opinião dos espectadores e alterar o enredo de acordo com
seus desejos é bastante forte,
de um ponto de vista financeiro. Seus defensores dizem: temos muito dinheiro e muitos
empregos envolvidos, se podemos determinar a trilha do sucesso, por que desprezar esse
recurso que nos vem da pesquisa? Por que perder dinheiro, se precisamos manter a
máquina funcionando a todo
vapor?
Outros podem até se arriscar
a um argumento baseado na
democracia: por que os autores
devem conduzir sozinhos suas
histórias, qual o problema de
ir definindo o caminho dos
personagens por meio de uma
consulta interativa?
Enfim, são argumentos importantes, mas deixam de fora
exatamente a questão da liberdade estética, do potencial
da arte de alterar posições definidas, da importância de arriscar-se a um fracasso de público, de saltar sem rede do
trapézio.
No caso das lésbicas, a intenção foi a melhor possível. Se o
amor delas resistisse à novela
das oito, à severidade da ceia
familiar, o país teria dado um
salto em direção ao século 21:
direitos humanos fundamentais estariam sendo reconhecidos num país onde a maioria é
chegada a uma pena de morte.
Mesmo se a novela fosse um
fracasso de público, a relação
homossexual teria uma compreensão maior se fosse mantida até o fim. Com a explosão
do shopping center, as duas
mulheres foram condenadas à
morte simbólica. Nos campos
de concentração, os homossexuais tinham um papel determinado - usavam um triângulo cor-de-rosa e morriam asfixiados como os outros prisioneiros, judeus e ciganos.
Não tem sentido comparar
um campo de concentração
com o shopping center que foi
pelos ares. Um era de verdade,
o outro de mentira. Os 6 milhões de mortos partiram para
sempre; as atrizes da "Torre de
Babel" devem estar se preparando para novos papéis, talvez felizes com as férias antecipadas.
Se considerarmos que o assassinato de homossexuais no
Brasil é uma constante, se levarmos em conta a fragilidade
das investigações, a não prisão
dos culpados, a maneira como
as pessoas se desfazem dos casos, como se o assassinato fosse
uma prática natural à relação
amorosa entre pessoas do mesmo sexo -tudo isso dá à explosão do shopping uma dimensão mais grave.
Seria injusto dizer que o desejo de afastar as lésbicas da
novela é o mesmo que aprovar
o assassinato de um homossexual. Não se trata disso. Mas
esse desejo de afastar da sala
de jantar um tema delicado
pode estar na raiz do esquecimento de tantos e tantos inquéritos que não deram em
nada. A repulsa ao homossexualismo fortalece os assassinatos pois, na verdade, muitos
são cometidos por homossexuais que se recusam a aceitar
sua condição, que introjetaram o ódio social.
Resta o jovem drogado que
também foi pelos ares. Sobre
ele, não é preciso ir muito longe. Um país que adota uma
campanha semi-oficial intitulada "Drogas nem Morto" já
traçou antecipadamente a sorte de todos os personagens que
se droguem na novela das oito.
Essa campanha explica um
pouco a impossibilidade da velha lei de se trocar seringas para evitar a epidemia de Aids. A
idéia de que é melhor morrer a
se drogar é uma das grandes
chaves para se entender a alma dos setores dominantes
brasileiros. Levarei anos para
entendê-los, se é que não estarei comprando umas roupinhas na próxima explosão do
nosso "thanatos" shopping
center.
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