São Paulo, segunda, 20 de julho de 1998

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Das câmaras de gás à explosão do shopping

FERNANDO GABEIRA

Colunista da Folha

A morte anunciada das duas lésbicas da novela "Torre de Babel" aconteceu, finalmente. O autor aproveitou a explosão do shopping center para mandar pelos ares o jovem drogado, que, em outras circunstâncias, deveria morrer de overdose.
Confesso que ouvi a explosão na minha sala, conferi os efeitos especiais e me senti um pouco derrotado. A idéia de colocar na trama duas lésbicas era legítima, como era e são legítimas quaisquer invenções de um dramaturgo. Se quisesse matá-las, estaria ao lado dele contra todas as investidas do politicamente correto, em nome da liberdade de expressão, do direito do autor conduzir sua história como bem quiser.
O diabo é que as lésbicas não morreram por uma necessidade intrínseca da história. Morreram porque os espectadores não estavam aceitando a trama com o entusiasmo necessário para manter o nível de audiência alto e todas as vantagens comerciais decorrentes disso.
O argumento de pesquisar a opinião dos espectadores e alterar o enredo de acordo com seus desejos é bastante forte, de um ponto de vista financeiro. Seus defensores dizem: temos muito dinheiro e muitos empregos envolvidos, se podemos determinar a trilha do sucesso, por que desprezar esse recurso que nos vem da pesquisa? Por que perder dinheiro, se precisamos manter a máquina funcionando a todo vapor?
Outros podem até se arriscar a um argumento baseado na democracia: por que os autores devem conduzir sozinhos suas histórias, qual o problema de ir definindo o caminho dos personagens por meio de uma consulta interativa?
Enfim, são argumentos importantes, mas deixam de fora exatamente a questão da liberdade estética, do potencial da arte de alterar posições definidas, da importância de arriscar-se a um fracasso de público, de saltar sem rede do trapézio.
No caso das lésbicas, a intenção foi a melhor possível. Se o amor delas resistisse à novela das oito, à severidade da ceia familiar, o país teria dado um salto em direção ao século 21: direitos humanos fundamentais estariam sendo reconhecidos num país onde a maioria é chegada a uma pena de morte.
Mesmo se a novela fosse um fracasso de público, a relação homossexual teria uma compreensão maior se fosse mantida até o fim. Com a explosão do shopping center, as duas mulheres foram condenadas à morte simbólica. Nos campos de concentração, os homossexuais tinham um papel determinado - usavam um triângulo cor-de-rosa e morriam asfixiados como os outros prisioneiros, judeus e ciganos.
Não tem sentido comparar um campo de concentração com o shopping center que foi pelos ares. Um era de verdade, o outro de mentira. Os 6 milhões de mortos partiram para sempre; as atrizes da "Torre de Babel" devem estar se preparando para novos papéis, talvez felizes com as férias antecipadas.
Se considerarmos que o assassinato de homossexuais no Brasil é uma constante, se levarmos em conta a fragilidade das investigações, a não prisão dos culpados, a maneira como as pessoas se desfazem dos casos, como se o assassinato fosse uma prática natural à relação amorosa entre pessoas do mesmo sexo -tudo isso dá à explosão do shopping uma dimensão mais grave.
Seria injusto dizer que o desejo de afastar as lésbicas da novela é o mesmo que aprovar o assassinato de um homossexual. Não se trata disso. Mas esse desejo de afastar da sala de jantar um tema delicado pode estar na raiz do esquecimento de tantos e tantos inquéritos que não deram em nada. A repulsa ao homossexualismo fortalece os assassinatos pois, na verdade, muitos são cometidos por homossexuais que se recusam a aceitar sua condição, que introjetaram o ódio social.
Resta o jovem drogado que também foi pelos ares. Sobre ele, não é preciso ir muito longe. Um país que adota uma campanha semi-oficial intitulada "Drogas nem Morto" já traçou antecipadamente a sorte de todos os personagens que se droguem na novela das oito.
Essa campanha explica um pouco a impossibilidade da velha lei de se trocar seringas para evitar a epidemia de Aids. A idéia de que é melhor morrer a se drogar é uma das grandes chaves para se entender a alma dos setores dominantes brasileiros. Levarei anos para entendê-los, se é que não estarei comprando umas roupinhas na próxima explosão do nosso "thanatos" shopping center.



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