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São Paulo, quarta-feira, 20 de agosto de 2003

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MARCELO COELHO

Um mergulho na comunidade

Se eu tivesse de decidir na base do sim ou não, diria que a onda das "flash mobs" não passa, claro, de bobagem. Com tanta coisa pedindo protesto e ação coletiva, não faz muito sentido que um grupo de marmanjos, atendendo a uma convocação pela internet, se reúna no cruzamento da rua Augusta com a avenida Paulista, para simplesmente...
Leio as instruções: "tirar o calçado de um dos pés, bater algumas vezes no solado (como se tirasse areia do seu interior), recolocá-lo e seguir em frente". Assim foi feito enquanto estava verde o sinal de pedestres, na quarta-feira passada, às 12h40. Sucesso! Reproduz-se aqui a moda que pegou em Nova York, Berlim e outras cidades do Primeiro Mundo.
A maior parte do que surge via internet -vírus, piadas, boatos, downloads, pop-ups, spams- já é irritante por natureza. Também as "flash mobs" irritaram muita gente -e já imaginou se um adversário da idéia resolve aparecer no encontro marcado? Quem sabe uma nova especialização na patologia urbana: o "serial killer" de "flash mobs"?
Felizmente, não tenho de decidir nada sobre o assunto. Há mais a comentar sobre as "flash mobs" do que ser a favor ou contra.
Mesmo o fato de ser uma idéia sem sentido pode torná-la interessante. Em plena avenida Paulista, num ambiente social em que só se pensa no que é útil, no que dá dinheiro ou no que poupa tempo, é salutar o aparecimento de algo vazio, que as pessoas fazem simplesmente por prazer.
Por prazer? Acho que nem isso. Bater o sapato no meio da rua não é a atividade mais divertida que conheço. Mas não é de agora que o entretenimento -sair de casa para ver a um filme "imperdível", por exemplo- é algo que se inscreve na ordem do utilitário, da hora marcada, do "presta ou não presta", de tudo aquilo que implica "satisfação garantida ou seu dinheiro de volta".
Já performances, happenings e manifestações desse tipo seriam, em tese, a expressão de algo mais espontâneo, gratuito, não necessariamente prazeroso ou divertido. Existem porque existem, recusando-se até ao compromisso de serem agradáveis ao cliente.
Contudo nada é menos espontâneo do que uma "flash mob". Trata-se de aderir a uma convocação, vinda não se sabe muito bem de onde, com hora, lugar e roteiro marcados. Nesse ponto, as "flash mobs" se assemelham a uma série de eventos em que, para além de qualquer conteúdo concreto, o que está em jogo é testar os poderes do próprio meio de comunicação utilizado.
Quando vejo a festa do "Criança Esperança", promovida pela Rede Globo, é claro que fico contente com o dinheiro que é doado às instituições de caridade. Mas sempre me dá a impressão de que a razão maior de tudo aquilo é demonstrar o poder de mobilização da própria TV. Ainda mais neste ano: numa natural homenagem ao fundador da emissora, o palco foi tomado por um painel de dimensões orwellianas com o rosto de Roberto Marinho.
A sensação de que somos mobilizáveis em torno de qualquer coisa -mitos políticos, guerras, promoções de automóveis- é ao mesmo tempo confirmada e neutralizada pelas "flash mobs". Sim, você é manipulado; mas, desta vez, pelo menos, em nome de coisa nenhuma, num ato sem nenhuma consequência.
Malignas, meritórias ou inúteis, todas as manipulações convergem para um mesmo ponto: oferecem, para quem vive solto na cidade, a sensação artificial de pertencer a uma comunidade. O prazer de tirar o sapato na rua, como eu disse, é mínimo; a sensação de fazer parte do grupo de tiradores de sapato, ou melhor, do grupo dos "flash mobbers" em geral, atende a necessidades bem reais.
Um dos aspectos mais bonitos do filme de Izabel Jaguaribe sobre Paulinho da Viola é justamente o de mostrar a alegria, a fraternidade que se firma a cada encontro das velhas rodas de samba do Rio de Janeiro. Resistindo a tudo o que possa haver de impessoal e mecânico na cidade moderna, todos se conhecem, identificados pela tradição, pela linhagem familiar, pela história; Paulinho da Viola é um alto príncipe na afetuosa e nada arrogante nobiliarquia da Portela.
Ele conta sua emoção quando viu, bem criança, o desfile da escola: "Foi um rio que passou em minha vida". É bem a sensação de mergulhar numa comunidade de pessoas, de fortalecer sua própria identidade cultural ao imergir no coletivo.
Bem mais passageira do que o rio de Paulinho da Viola é a "flash mob" que tomou, por menos de um minuto, a avenida Paulista. Curioso que tenha se formado em torno do gesto de quem tira a poeira do sapato.
Pois esse gesto não deixa de simbolizar tudo o que há de desenraizado na vida urbana, tudo o que contrasta com a identidade cultural, com o senso de vinculação e de linhagem que dá vida às comunidades tradicionais. Uma comunidade rapidíssima de pedestres -mas haverá coisa mais antiquada do que um pedestre?- contradiz-se a si mesma. Não deixa de expressar, o que é bonito, a nostalgia de uma igualdade arcaica (quase iraquiana no ritual da areia e dos sapatos) sob a fascinação de um modismo tecnológico e instantâneo.

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