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MARCELO COELHO
Um mergulho na comunidade
Se eu tivesse de decidir na base
do sim ou não, diria que a onda das "flash mobs" não passa,
claro, de bobagem. Com tanta
coisa pedindo protesto e ação coletiva, não faz muito sentido que
um grupo de marmanjos, atendendo a uma convocação pela internet, se reúna no cruzamento
da rua Augusta com a avenida
Paulista, para simplesmente...
Leio as instruções: "tirar o calçado de um dos pés, bater algumas vezes no solado (como se tirasse areia do seu interior), recolocá-lo e seguir em frente". Assim
foi feito enquanto estava verde o
sinal de pedestres, na quarta-feira
passada, às 12h40. Sucesso! Reproduz-se aqui a moda que pegou
em Nova York, Berlim e outras cidades do Primeiro Mundo.
A maior parte do que surge via
internet -vírus, piadas, boatos,
downloads, pop-ups, spams- já
é irritante por natureza. Também
as "flash mobs" irritaram muita
gente -e já imaginou se um adversário da idéia resolve aparecer
no encontro marcado? Quem sabe uma nova especialização na
patologia urbana: o "serial killer"
de "flash mobs"?
Felizmente, não tenho de decidir nada sobre o assunto. Há mais
a comentar sobre as "flash mobs"
do que ser a favor ou contra.
Mesmo o fato de ser uma idéia
sem sentido pode torná-la interessante. Em plena avenida Paulista, num ambiente social em
que só se pensa no que é útil, no
que dá dinheiro ou no que poupa
tempo, é salutar o aparecimento
de algo vazio, que as pessoas fazem simplesmente por prazer.
Por prazer? Acho que nem isso.
Bater o sapato no meio da rua
não é a atividade mais divertida
que conheço. Mas não é de agora
que o entretenimento -sair de
casa para ver a um filme "imperdível", por exemplo- é algo que
se inscreve na ordem do utilitário,
da hora marcada, do "presta ou
não presta", de tudo aquilo que
implica "satisfação garantida ou
seu dinheiro de volta".
Já performances, happenings e
manifestações desse tipo seriam,
em tese, a expressão de algo mais
espontâneo, gratuito, não necessariamente prazeroso ou divertido. Existem porque existem, recusando-se até ao compromisso de
serem agradáveis ao cliente.
Contudo nada é menos espontâneo do que uma "flash mob".
Trata-se de aderir a uma convocação, vinda não se sabe muito
bem de onde, com hora, lugar e
roteiro marcados. Nesse ponto, as
"flash mobs" se assemelham a
uma série de eventos em que, para além de qualquer conteúdo
concreto, o que está em jogo é testar os poderes do próprio meio de
comunicação utilizado.
Quando vejo a festa do "Criança Esperança", promovida pela
Rede Globo, é claro que fico contente com o dinheiro que é doado
às instituições de caridade. Mas
sempre me dá a impressão de que
a razão maior de tudo aquilo é
demonstrar o poder de mobilização da própria TV. Ainda mais
neste ano: numa natural homenagem ao fundador da emissora,
o palco foi tomado por um painel
de dimensões orwellianas com o
rosto de Roberto Marinho.
A sensação de que somos mobilizáveis em torno de qualquer coisa -mitos políticos, guerras, promoções de automóveis- é ao
mesmo tempo confirmada e neutralizada pelas "flash mobs". Sim,
você é manipulado; mas, desta
vez, pelo menos, em nome de coisa nenhuma, num ato sem nenhuma consequência.
Malignas, meritórias ou inúteis,
todas as manipulações convergem para um mesmo ponto: oferecem, para quem vive solto na cidade, a sensação artificial de pertencer a uma comunidade. O prazer de tirar o sapato na rua, como
eu disse, é mínimo; a sensação de
fazer parte do grupo de tiradores
de sapato, ou melhor, do grupo
dos "flash mobbers" em geral,
atende a necessidades bem reais.
Um dos aspectos mais bonitos
do filme de Izabel Jaguaribe sobre
Paulinho da Viola é justamente o
de mostrar a alegria, a fraternidade que se firma a cada encontro das velhas rodas de samba do
Rio de Janeiro. Resistindo a tudo
o que possa haver de impessoal e
mecânico na cidade moderna, todos se conhecem, identificados
pela tradição, pela linhagem familiar, pela história; Paulinho da
Viola é um alto príncipe na afetuosa e nada arrogante nobiliarquia da Portela.
Ele conta sua emoção quando
viu, bem criança, o desfile da escola: "Foi um rio que passou em
minha vida". É bem a sensação
de mergulhar numa comunidade
de pessoas, de fortalecer sua própria identidade cultural ao imergir no coletivo.
Bem mais passageira do que o
rio de Paulinho da Viola é a
"flash mob" que tomou, por menos de um minuto, a avenida
Paulista. Curioso que tenha se
formado em torno do gesto de
quem tira a poeira do sapato.
Pois esse gesto não deixa de simbolizar tudo o que há de desenraizado na vida urbana, tudo o que
contrasta com a identidade cultural, com o senso de vinculação e
de linhagem que dá vida às comunidades tradicionais. Uma comunidade rapidíssima de pedestres -mas haverá coisa mais antiquada do que um pedestre?-
contradiz-se a si mesma. Não deixa de expressar, o que é bonito, a
nostalgia de uma igualdade arcaica (quase iraquiana no ritual
da areia e dos sapatos) sob a fascinação de um modismo tecnológico e instantâneo.
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