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ARTIGO
Música eletroacústica: eu não me canso de falar
FLO MENEZES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Fui tomado de surpresa quando vi, em reportagem na Folha de 11 de agosto, o título do novo show de Gilberto Gil: "Eletracústico". No exato dia anterior,
havia proferido depoimento no
Centro Cultural de São Paulo, em
que lamentei, mais uma vez, a
usurpação do termo "eletrônico"
pela música praticada pelos DJs e
manifestei, iludido, certo alento:
ao menos o termo "eletroacústico" sempre nos pertencerá, a nós
que atuamos na música radical
com seus 800 anos de história, e
que, desde o surgimento do gênero em 1948, compomos com recursos tecnológicos.
Mas, ao ler a matéria, não acreditei: apesar do desvio de linguagem -Gil preferiu o termo "eletracústico"-, era evidente sua intenção. "Acho legítimo que o setor popular possa se apropriar de
nomenclaturas eruditas", afirmou. Dois dias depois, tem-se outra reportagem na qual, ao que
parece, refere-se a mim: "Gil diz
que se apropriou do título "Eletracústico" por inspiração de um
músico erudito de que não recorda o nome". Gil completa: "Ele se
queixava, num artigo contrariado, de essa música eletrônica de
festa ser chamada de música eletrônica. Defendia a concepção
eletracústica erudita contra usos
populares abastardadores. Aí me
ocorreu chamar o show de "Eletracústico'".
De fato, em várias ocasiões, declarei meu descontentamento
diante da usurpação do termo, e
que tenha eu servido de fonte de
inspiração a um artista popular de
sua envergadura é motivo de satisfação. Mas que agora isto ocorra com o próprio termo "eletroacústico", pelo qual ficou conhecida a elaborada música de estúdio
na esfera dita "erudita" (termo sisudo que pouca relação guarda
com nossa verve experimental), é
algo no mínimo embaraçoso.
Na apresentação ao "Harmonia", de Arnold Schoenberg
(Unesp, 2001), discuto a importância que certa designação confere a um fato artístico bem definido, mas cujo lugar na história só
passa a ser reconhecido após ganhar um nome. Nomear uma coisa é reconhecer o lugar que esta
ocupa em determinado processo
cultural. A coisa não se resume a
seu nome, mas, a partir do fato de
podermos nomeá-la, ela adquire
valor, institui-se enquanto singularidade, soma-se ao arsenal mítico do fazer humano.
Nomear é, então, contribuir para que se desenhe mais uma curva
na espiral da invenção, não em
um simples "progresso" unilateral das linguagens, mas em um
processo que podemos designar
por "transgresso": uma evolução
de índole "quântica", num bosque inventivo em que ramos que
florescem num lugar podem dar
frutos simultaneamente em outras floradas, distantes de tal ou
qual árvore genealógica.
Mas, em meio aos ramos que
frutificam, há aqueles que resistem em florir e permanecem incrustados no solo. Quando o sentido de um nome é esvaziado, desloca-se o foco de sua experiência
para fazeres não necessariamente
relacionados ao processo que lhe
deu origem, e o lugar dessa coisa
se perde. Em vez de se valer da invenção e desenhar mais uma das
curvas possíveis de sua espiral,
circunscreve-se um círculo vicioso. "Transgresso" verte-se em regresso. A espiral tende, então, a
perder sua propensão evolutiva,
essencialmente transgressiva, e
instaura-se o que Erza Pound
classificava de diluição cultural.
A que serve tudo isso, senão a
um desserviço cultural em um
país já (e ainda) tão injustiçado?
Se genialidade puder ser definida
como a capacidade singular de
criação dentro de certo âmbito de
atuação, qualquer que seja este,
será óbvio reconhecer que tanto
um Gil quanto um Caetano são,
bem acima da média, absolutos
gênios da música popular. Em
que pese toda a contribuição que
o tropicalismo dera ao ideário de
libertação das décadas de 60 e 70,
duvido em essência, porém, que a
genialidade em arte não passe
igualmente pela opção quanto ao
próprio âmbito de atuação lingüística do artista. Pois a opção
mercadológica nunca me convenceu quanto a um mergulho existencial, radicalmente profundo
no universo dos sons e da linguagem musical histórica.
O trampolim para este salto,
que de ornamental nada tem, reveste-se de outro caráter: "música
especulativa".
A música, matemática dos afetos, é a mais difícil das artes. Imbuída de aspectos técnicos, seduz
o ser humano por possuir o dom
de provocar emoções as mais indomáveis e universais, até mesmo
arcaicas. E a cilada da música faz
dela mesma a maior vítima: por
aliar o cálculo às paixões, talvez
constitua a atividade humana de
maior abstração intelectual, mas é
também, por sua dificuldade,
aquela na qual o ser humano mais
facilmente se fragiliza.
Em arte, os meios não justificam os fins, e não será suficiente o
mero apelo a um recurso tecnológico para que se lance mão de
uma terminologia que, de início,
define certa poética. Não há, aí,
qualquer legitimidade, mesmo
que seja para se apartar dos modismos "eletrônicos". É preciso
dar nome aos bois: música eletroacústica é a composição especulativa realizada em estúdio eletrônico cujos traços principais são
a espacialidade sonora (a forma
como os sons são dispostos no espaço) e a investigação harmônica
e espectral.
Recentemente fui entrevistado
por Arrigo Barnabé em seu notável programa transmitido pela
Cultura FM. Ao final da emissão,
indagado sobre o animal que gostaria de ser, falei de supetão: macaco. Instintivamente, optei por
esse bicho alegre e saltitante, motivado pelo desejo antropofágico
de pular de galho em galho no
bosque da invenção musical
transgressiva, ao qual também me
referi naquela ocasião. Mas agora,
triste ao ver algo pelo qual lutamos emergir em forma diluída,
ainda que pelas talentosas mãos
de Gil, me pergunto se ele não tinha razão quando se apropriava
de outra expressão e dizia: "Cada
macaco no seu galho".
Flo Menezes é professor e compositor
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