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CARLOS HEITOR CONY
Vargas: a redação da carta-testamento
De início, pensara num
discurso, um pronunciamento oficial à nação, traumatizada pela crise e pelas denúncias
que o cercavam. Mas considerou
que não lhe cabia falar fora de
tempo, antes que as autoridades
encarregadas do inquérito policial-militar se manifestassem oficialmente apresentando as conclusões. O que havia, até então,
eram verdades e inverdades
transpiradas de um tumultuado
processo mais político que policial. Não competia a ele, como
chefe da nação, intrometer-se na
mecânica processual. A agitação
política e militar provocada pelo
inquérito e pelas revelações parciais surgidas ou suspeitadas não
merecia ainda que ele lhe passasse recibo, abordando-a em pronunciamento formal.
Muitos de seus amigos e auxiliares insinuavam que era necessário um pronunciamento enérgico e pessoal do presidente sobre
os últimos acontecimentos. Seria
uma exibição de força do governo, um atestado de que o poder
ainda não tinha mudado de
mãos. Ele se recusara a tal insinuação, que às vezes chegava a
ser uma imposição dos grupos
que o rodeavam. Argumentava
que nada teria a responder, pois
nada lhe fora perguntado. Houvera um crime, a polícia e a Aeronáutica apuravam o crime, nenhum entrave governamental era
colocado nos trabalhos, que prosseguiam de forma atabalhoada,
mas eficaz. Desde o primeiro instante, ele recomendara a completa apuração do caso, chegara à
medida extrema que alguns julgaram inoportuna de franquear o
próprio Palácio do Governo a
qualquer investigação. Os inquisidores não tinham portas nem
gavetas fechadas.
Sua isenção, no caso, era reconhecida até mesmo pelos homens
do Galeão. O responsável pelo inquérito, em uma das batidas procedidas nos aposentos de Gregório, fora chamado pelo presidente. O governante máximo não só
reiterou a total autonomia das
investigações como perguntou detalhes do processo. O coronel que
presidia o inquérito disse o que
sabia, e o presidente, sombria,
mas lucidamente, admitira o mar
de lama em que alguns escalões
subalternos do governo haviam se
atolado.
Ele não podia, sem quebra de
sua dignidade pessoal, intrometer-se numa briga alheia, numa
simples, embora bem urdida provocação política.
Sabia, contudo, que, mais dia,
menos dia, teria de se manifestar,
dar uma resposta -não à crise,
muito menos à oposição. Uma
resposta que seria, antes de mais
nada, uma afirmação diante da
história. Conhecia de sobra os
cordéis que manobravam as marionetes da cena político-policial,
sabia-lhes os nomes e as intenções. Sabia mais: o preço que fora
pedido para a montagem infernal
daquela crise. Seria um ato de covardia de sua parte, de traição
para consigo mesmo, se se recusasse, em nome de uma prudência estéril, a denunciar o que sabia.
Por tudo isso, convocara Maciel
Filho para redigir uma espécie de
discurso, que tanto poderia ser
mesmo um discurso, como uma
declaração, um manifesto, um
apelo ou, em último caso, um testamento. As frases básicas e o espírito da declaração já estavam
prontos, de próprio punho. Maciel Filho estava habituado, havia
muito, ao processo de redigir do
presidente, tal como os seus antecessores: Ronald de Carvalho,
Gregório da Fonseca, Lourival
Fontes, Queiroz, Vergara e outros.
Um processo simples e não raro
entre homens públicos. A idéia
básica era lançada em pequenas
frases ou conceitos, às vezes complementados com indicações como "consulte dados técnicos" ou
"não estou a par das últimas cifras, veja o "Diário Oficial'". O redator, de posse dos dados, fazia
uma versão inicial e a levava ao
presidente, que passava dois ou
três dias examinando cada frase,
palavra por palavra. Fazia correções que iam da simples eliminação de uma vírgula à intromissão
de um parágrafo inteiro.
Devolvia o texto ao redator para nova versão. E o documento ia
e vinha, três, quatro, às vezes cinco vezes, entre o redator e o presidente, até que fossem encontrados o texto e o espírito exatos. Essa mecânica redacional era usada por ele desde 1930: o manifesto
em que o presidente do Rio Grande do Sul lançou o brado da revolução teve redação demorada, a
quatro mãos, entre Luís Vergara
e Vargas. E foi adotada ao longo
de toda a vida pública de Getúlio.
Era uma rotina.
Ao receber os primeiros esboços,
Maciel Filho pensou tratar-se de
um discurso ou de uma declaração do governo, pressionado então pelos acontecimentos. Contudo, pelo teor de algumas emendas
posteriores, começou a suspeitar
de que alguma coisa se escondia
naquela mensagem. A crise chegava a seu clímax, e a possibilidade de um movimento armado
era, dia a dia, pouco mais do que
uma hipótese e pouco menos do
que uma imposição.
Sim, talvez fosse isto: em caso de
luta armada ou de uma alucinada resistência pessoal em defesa
de seu mandato e de sua honra, o
presidente necessitaria lançar um
manifesto ou, quando menos,
deixar um testamento. Examinada posteriormente, e a sangue-frio, a carta pareceria, em sua redação final, um bilhete de suicida. Mas a resistência, mesmo a
simples resistência política, naquela crise e naquela altura da
crise, equivalia a um suicídio.
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