São Paulo, sexta-feira, 20 de agosto de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Vargas: a redação da carta-testamento

De início, pensara num discurso, um pronunciamento oficial à nação, traumatizada pela crise e pelas denúncias que o cercavam. Mas considerou que não lhe cabia falar fora de tempo, antes que as autoridades encarregadas do inquérito policial-militar se manifestassem oficialmente apresentando as conclusões. O que havia, até então, eram verdades e inverdades transpiradas de um tumultuado processo mais político que policial. Não competia a ele, como chefe da nação, intrometer-se na mecânica processual. A agitação política e militar provocada pelo inquérito e pelas revelações parciais surgidas ou suspeitadas não merecia ainda que ele lhe passasse recibo, abordando-a em pronunciamento formal.
Muitos de seus amigos e auxiliares insinuavam que era necessário um pronunciamento enérgico e pessoal do presidente sobre os últimos acontecimentos. Seria uma exibição de força do governo, um atestado de que o poder ainda não tinha mudado de mãos. Ele se recusara a tal insinuação, que às vezes chegava a ser uma imposição dos grupos que o rodeavam. Argumentava que nada teria a responder, pois nada lhe fora perguntado. Houvera um crime, a polícia e a Aeronáutica apuravam o crime, nenhum entrave governamental era colocado nos trabalhos, que prosseguiam de forma atabalhoada, mas eficaz. Desde o primeiro instante, ele recomendara a completa apuração do caso, chegara à medida extrema que alguns julgaram inoportuna de franquear o próprio Palácio do Governo a qualquer investigação. Os inquisidores não tinham portas nem gavetas fechadas.
Sua isenção, no caso, era reconhecida até mesmo pelos homens do Galeão. O responsável pelo inquérito, em uma das batidas procedidas nos aposentos de Gregório, fora chamado pelo presidente. O governante máximo não só reiterou a total autonomia das investigações como perguntou detalhes do processo. O coronel que presidia o inquérito disse o que sabia, e o presidente, sombria, mas lucidamente, admitira o mar de lama em que alguns escalões subalternos do governo haviam se atolado.
Ele não podia, sem quebra de sua dignidade pessoal, intrometer-se numa briga alheia, numa simples, embora bem urdida provocação política.
Sabia, contudo, que, mais dia, menos dia, teria de se manifestar, dar uma resposta -não à crise, muito menos à oposição. Uma resposta que seria, antes de mais nada, uma afirmação diante da história. Conhecia de sobra os cordéis que manobravam as marionetes da cena político-policial, sabia-lhes os nomes e as intenções. Sabia mais: o preço que fora pedido para a montagem infernal daquela crise. Seria um ato de covardia de sua parte, de traição para consigo mesmo, se se recusasse, em nome de uma prudência estéril, a denunciar o que sabia.
Por tudo isso, convocara Maciel Filho para redigir uma espécie de discurso, que tanto poderia ser mesmo um discurso, como uma declaração, um manifesto, um apelo ou, em último caso, um testamento. As frases básicas e o espírito da declaração já estavam prontos, de próprio punho. Maciel Filho estava habituado, havia muito, ao processo de redigir do presidente, tal como os seus antecessores: Ronald de Carvalho, Gregório da Fonseca, Lourival Fontes, Queiroz, Vergara e outros.
Um processo simples e não raro entre homens públicos. A idéia básica era lançada em pequenas frases ou conceitos, às vezes complementados com indicações como "consulte dados técnicos" ou "não estou a par das últimas cifras, veja o "Diário Oficial'". O redator, de posse dos dados, fazia uma versão inicial e a levava ao presidente, que passava dois ou três dias examinando cada frase, palavra por palavra. Fazia correções que iam da simples eliminação de uma vírgula à intromissão de um parágrafo inteiro.
Devolvia o texto ao redator para nova versão. E o documento ia e vinha, três, quatro, às vezes cinco vezes, entre o redator e o presidente, até que fossem encontrados o texto e o espírito exatos. Essa mecânica redacional era usada por ele desde 1930: o manifesto em que o presidente do Rio Grande do Sul lançou o brado da revolução teve redação demorada, a quatro mãos, entre Luís Vergara e Vargas. E foi adotada ao longo de toda a vida pública de Getúlio. Era uma rotina.
Ao receber os primeiros esboços, Maciel Filho pensou tratar-se de um discurso ou de uma declaração do governo, pressionado então pelos acontecimentos. Contudo, pelo teor de algumas emendas posteriores, começou a suspeitar de que alguma coisa se escondia naquela mensagem. A crise chegava a seu clímax, e a possibilidade de um movimento armado era, dia a dia, pouco mais do que uma hipótese e pouco menos do que uma imposição.
Sim, talvez fosse isto: em caso de luta armada ou de uma alucinada resistência pessoal em defesa de seu mandato e de sua honra, o presidente necessitaria lançar um manifesto ou, quando menos, deixar um testamento. Examinada posteriormente, e a sangue-frio, a carta pareceria, em sua redação final, um bilhete de suicida. Mas a resistência, mesmo a simples resistência política, naquela crise e naquela altura da crise, equivalia a um suicídio.


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