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Noel Coward: 100 anos de farsa
Jornalista inglês lança biografia do dramaturgo, derrubando o mito de sofisticação que cerca seu nome
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PAULO VIEIRA
especial para a Folha, em Londres
Em dezembro deste ano, Noel
Coward (1899-1973) completaria
100 anos. Nascido em Teddington, uma espécie de cidade-dormitório de Londres, filho de uma
família decaída com ligações com
os Spencer (de onde vem Diana),
Coward tornou-se uma das figuras mais famosas do século.
Suas canções (digamos "Dance,
dance, dance, little lady/ Leave tomorrow behind", de 1928) são populares até hoje -Coward teve
um disco-tributo gravado por expoentes do britpop (selo EMI).
Suas mais de 40 peças entram e
saem de cartaz desde que chocou
a sociedade inglesa com "The
Vortex", de 1923 (quatro anos
após estrear na dramaturgia). Escreveu musicais e operetas. Atuou
em dezenas de filmes. Dirigiu alguns, ganhou um Oscar especial
por "Nosso Barco, Nossa Alma",
o filme levanta-moral da tropa inglesa na Segunda Guerra, que co-dirigiu com o David Lean.
Celebrizou um estilo de vida sofisticado, em que flûtes de champanhe, piteiras, paraísos tropicais,
mesuras, opulência e ambiguidade sexual eram valores elevados.
Morreu com o título de sir, deixando compilações de contos,
três autobiografias e
um legado de aforismos que o identificam logo com as
palavras "sofisticação" e "wit" (agudez
de raciocínio).
Ainda assim, Coward
dizia preferir ser lembrado "pelo charme."
Foi com a vasta memória desse sujeito que o jornalista e escritor inglês Philip Hoare foi se meter em
"Noel Coward - A Biografia",
que a Record promete para
outubro (preço a definir). Coward, ao fim do catatau, sai menos charmoso, tão reacionário como vários de seus personagens e
incrivelmente eficaz -"como
Madonna ou David Bowie"- no
cultivo de uma falsa imagem pública. Leia a seguir a entrevista
que Hoare deu à Folha, em Londres.
Folha - Como é escrever a biografia de alguém que deixou
três autobiografias e um diário?
Ter tantas fontes de pesquisa
não te atrapalhou?
Philip Hoare - Foi muito assustador no começo. Temia não ter
nada novo a dizer. Mas os escritos
de Coward dão a sensação de que
algo foi deixado para trás. Na peça
"Design for Living" (1932), Leo
declara: "É tudo, na verdade, uma
questão de máscaras (...). Nós as
usamos como uma forma de proteção (...). Devemos ter alguns
meios de defender nossas tímidas, encolhidas almas, do fulgor
da civilização". Meu trabalho foi
escalar a enorme e falsa fachada
que Coward erigiu entre si e o
mundo. De uma certa maneira,
tudo o que Coward escreveu sobre si mesmo é mentira.
Folha - Ele não revelou em
seus escritos sua homossexualidade, mas a deixou implícita
muitas vezes por meio de seus
personagens, como no último
que interpretou, Hugo Latymer,
de "A Song at Twilight".
Hoare - Com Latymer, Coward
estava certamente se exibindo, assim como (o também homossexual escritor) Somerset Maugham. Durante os espetáculos,
Coward começou a perceber que
a máscara caía. Vivian Matalon,
que dirigiu a peça em 1965, me
disse que Coward estava em pânico. A condenação por ofensas homossexuais de Oscar Wilde e o caso Pemberton Billing -uma reprise, em 1918, da condenação de
Wilde- obrigou-o a se esconder.
Na vida privada, contudo, Coward era abertamente homossexual. É um de seus maiores paradoxos. Toda sua vida e obra foram guiadas por esse paradoxo.
Folha - Em "Relative Values", o
mordomo Crestwell fecha a peça com um discurso em que abjeta a "igualdade social". Esse
era o pensamento de Coward?
Hoare - Sim, eu penso que o discurso de Crestwell expressa a opinião de Coward, nos seus anos
tardios. Ele se tornou mais reacionário com o tempo, dizia-se ofendido pela geração que o sucedia.
Mas sua consciência de classe tem
raízes na infância. Sua mãe era esnobe e via em Noel uma oportunidade de reaver o status social
perdido. Coward cresceu com valores vitorianos, que não são facilmente sacudidos. Mas seu reacionarismo cresceu depois da Segunda Guerra. Nos anos 20, Coward
era visto como uma séria ameaça
à moral do Reino Unido; diziam
que tomava cocaína e bolinava
garotos atrás dos palcos. Antes
dele, as pessoas não se tratavam
por "darling", a menos que estivessem apaixonadas. Coward foi
o modelo de uma geração, foi anterior a seu tempo.
Folha - Por qual aspecto de
sua obra você diria que Coward
gostaria de ser lembrado? E, na
sua opinião de biógrafo, qual
seu principal legado?
Hoare - Coward respondeu isso
uma vez: "Pelo meu charme".
Penso que sua contribuição para a
dramaturgia inglesa é insuperável. Seus contos são criminosamente subestimados. E, ainda,
Coward compôs a trilha sonora
de uma geração.
Folha - A imagem de alguém
charmoso, incrivelmente sagaz,
lhe faz justiça?
Hoare - Coward nunca se considerou engenhoso como Oscar
Wilde. Não gostava de citar aforismos durante o jantar, embora
fizesse isso. Sua imagem suave, o
robe, a piteira, o champanhe, tudo isso era imagem: propagava a
si mesmo, como fazem Madonna
ou David Bowie. Coward odiava
champanhe, fumava cigarro com
o punho cerrado e não via nada
melhor do que ir para a cama cedo. Mas a visão pública é de alguém que toda noite deslizava pelo assoalho envernizado dos salões de Mayflair.
Folha - Por que Coward se envolvia em filmes tão duvidosos,
como "Italian Job"?
Hoare - Coward adorava a repercussão imediata -e o dinheiro- de suas aparições em cinema. Também achava que, fosse
qual fosse o papel em que atuasse,
roubava completamente a cena.
Folha - Quão frustrado ficaria
Coward se morresse sem o título
de cavaleiro?
Hoare - Ter-se tornado cavaleiro só no final da vida mostra o
grau de esnobismo e homofobia
no Reino Unido daquele tempo.
Um rumoroso affaire com o príncipe George, tio da atual rainhaElizabeth 2º, não ajudou muito.
Sem o título de sir, morreria um
pouco mais amargo.
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