São Paulo, Segunda-feira, 20 de Setembro de 1999
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Noel Coward: 100 anos de farsa




Jornalista inglês lança biografia do dramaturgo, derrubando o mito de sofisticação que cerca seu nome


PAULO VIEIRA
especial para a Folha, em Londres

Em dezembro deste ano, Noel Coward (1899-1973) completaria 100 anos. Nascido em Teddington, uma espécie de cidade-dormitório de Londres, filho de uma família decaída com ligações com os Spencer (de onde vem Diana), Coward tornou-se uma das figuras mais famosas do século.
Suas canções (digamos "Dance, dance, dance, little lady/ Leave tomorrow behind", de 1928) são populares até hoje -Coward teve um disco-tributo gravado por expoentes do britpop (selo EMI).
Suas mais de 40 peças entram e saem de cartaz desde que chocou a sociedade inglesa com "The Vortex", de 1923 (quatro anos após estrear na dramaturgia). Escreveu musicais e operetas. Atuou em dezenas de filmes. Dirigiu alguns, ganhou um Oscar especial por "Nosso Barco, Nossa Alma", o filme levanta-moral da tropa inglesa na Segunda Guerra, que co-dirigiu com o David Lean.
Celebrizou um estilo de vida sofisticado, em que flûtes de champanhe, piteiras, paraísos tropicais, mesuras, opulência e ambiguidade sexual eram valores elevados. Morreu com o título de sir, deixando compilações de contos, três autobiografias e um legado de aforismos que o identificam logo com as palavras "sofisticação" e "wit" (agudez de raciocínio).
Ainda assim, Coward dizia preferir ser lembrado "pelo charme."
Foi com a vasta memória desse sujeito que o jornalista e escritor inglês Philip Hoare foi se meter em "Noel Coward - A Biografia", que a Record promete para outubro (preço a definir). Coward, ao fim do catatau, sai menos charmoso, tão reacionário como vários de seus personagens e incrivelmente eficaz -"como Madonna ou David Bowie"- no cultivo de uma falsa imagem pública. Leia a seguir a entrevista que Hoare deu à Folha, em Londres.

Folha - Como é escrever a biografia de alguém que deixou três autobiografias e um diário? Ter tantas fontes de pesquisa não te atrapalhou?
Philip Hoare -
Foi muito assustador no começo. Temia não ter nada novo a dizer. Mas os escritos de Coward dão a sensação de que algo foi deixado para trás. Na peça "Design for Living" (1932), Leo declara: "É tudo, na verdade, uma questão de máscaras (...). Nós as usamos como uma forma de proteção (...). Devemos ter alguns meios de defender nossas tímidas, encolhidas almas, do fulgor da civilização". Meu trabalho foi escalar a enorme e falsa fachada que Coward erigiu entre si e o mundo. De uma certa maneira, tudo o que Coward escreveu sobre si mesmo é mentira.

Folha - Ele não revelou em seus escritos sua homossexualidade, mas a deixou implícita muitas vezes por meio de seus personagens, como no último que interpretou, Hugo Latymer, de "A Song at Twilight".
Hoare -
Com Latymer, Coward estava certamente se exibindo, assim como (o também homossexual escritor) Somerset Maugham. Durante os espetáculos, Coward começou a perceber que a máscara caía. Vivian Matalon, que dirigiu a peça em 1965, me disse que Coward estava em pânico. A condenação por ofensas homossexuais de Oscar Wilde e o caso Pemberton Billing -uma reprise, em 1918, da condenação de Wilde- obrigou-o a se esconder. Na vida privada, contudo, Coward era abertamente homossexual. É um de seus maiores paradoxos. Toda sua vida e obra foram guiadas por esse paradoxo.

Folha - Em "Relative Values", o mordomo Crestwell fecha a peça com um discurso em que abjeta a "igualdade social". Esse era o pensamento de Coward?
Hoare -
Sim, eu penso que o discurso de Crestwell expressa a opinião de Coward, nos seus anos tardios. Ele se tornou mais reacionário com o tempo, dizia-se ofendido pela geração que o sucedia. Mas sua consciência de classe tem raízes na infância. Sua mãe era esnobe e via em Noel uma oportunidade de reaver o status social perdido. Coward cresceu com valores vitorianos, que não são facilmente sacudidos. Mas seu reacionarismo cresceu depois da Segunda Guerra. Nos anos 20, Coward era visto como uma séria ameaça à moral do Reino Unido; diziam que tomava cocaína e bolinava garotos atrás dos palcos. Antes dele, as pessoas não se tratavam por "darling", a menos que estivessem apaixonadas. Coward foi o modelo de uma geração, foi anterior a seu tempo.

Folha - Por qual aspecto de sua obra você diria que Coward gostaria de ser lembrado? E, na sua opinião de biógrafo, qual seu principal legado?
Hoare -
Coward respondeu isso uma vez: "Pelo meu charme". Penso que sua contribuição para a dramaturgia inglesa é insuperável. Seus contos são criminosamente subestimados. E, ainda, Coward compôs a trilha sonora de uma geração.

Folha - A imagem de alguém charmoso, incrivelmente sagaz, lhe faz justiça?
Hoare -
Coward nunca se considerou engenhoso como Oscar Wilde. Não gostava de citar aforismos durante o jantar, embora fizesse isso. Sua imagem suave, o robe, a piteira, o champanhe, tudo isso era imagem: propagava a si mesmo, como fazem Madonna ou David Bowie. Coward odiava champanhe, fumava cigarro com o punho cerrado e não via nada melhor do que ir para a cama cedo. Mas a visão pública é de alguém que toda noite deslizava pelo assoalho envernizado dos salões de Mayflair.

Folha - Por que Coward se envolvia em filmes tão duvidosos, como "Italian Job"?
Hoare -
Coward adorava a repercussão imediata -e o dinheiro- de suas aparições em cinema. Também achava que, fosse qual fosse o papel em que atuasse, roubava completamente a cena.

Folha - Quão frustrado ficaria Coward se morresse sem o título de cavaleiro?
Hoare -
Ter-se tornado cavaleiro só no final da vida mostra o grau de esnobismo e homofobia no Reino Unido daquele tempo. Um rumoroso affaire com o príncipe George, tio da atual rainhaElizabeth 2º, não ajudou muito. Sem o título de sir, morreria um pouco mais amargo.


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