UOL


São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

"Macau" é província de simetrias poéticas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Alguns livros recentes de escritores brasileiros trazem como título o nome de lugares estrangeiros: "Budapeste" (de Chico Buarque), "Lisboa" (ficção "noir" do fotógrafo J.R. Duran), "Hong Kong e Outros Poemas" (de Antônio Moura) ou o ainda inédito "Mongólia" (de Bernardo Carvalho, que deve ser lançado em outubro). É o caso também de "Macau", novo livro do poeta Paulo Henriques Britto.
Cada um dos autores acima tem seus motivos para recorrer a essas metáforas toponímicas de estranhamento e distância. No caso de Britto, a antiga colônia portuguesa é mencionada de passagem em um dos poemas do livro. Mas, ao mesmo tempo, o nome "Macau" confere concretude geográfica a um tema que percorre o livro: a desproporção entre a ambição expressiva do poeta e os limites que lhe são impostos ("Tão limitado, estar aqui e agora,/ dentro de si, sem poder ir embora,/ dentro de um espaço mínimo que mal/ se consegue explorar, esse minúsculo/ império sem território, Macau// sempre à mercê do latejar de um músculo").
A leitura desse poema pode dar uma visão geral do trabalho de Britto. Ele faz parte de uma seção intitulada "Sete Sonetos Simétricos", em que os 14 versos do soneto tradicional são dispostos de modo heterodoxo, com cinco estrofes que descrevem uma parábola: o poema começa e termina com estrofes de dois versos, tendo ao centro uma estrofe de quatro -numa simetria reforçada por um esquema de rimas que começa por versos contíguos, passa para rimas intercaladas, retornando no final ao cerrado paralelismo do início.
A simetria entre as palavras tem aqui um sentido claro: funciona como uma espécie de paliativo para as fissuras do "império sem território" da experiência, que nos acena com um oceano de possibilidades, mas que nos confina no "cais úmido e ínfimo do eu".
Ao longo de todo o livro, encontramos uma sucessão de poemas que respondem ao repertório das formas fixas e àquele princípio, formulado por Curtius, de que, "sem um esquema de configuração pairando em seu espírito, o poeta não consegue compor". Ou seja, mesmo um poema sem metrificação e composto por versos brancos (como algumas vezes acontece neste livro) deve conservar a memória de um padrão rítmico que faz da poesia uma segunda natureza, uma província à parte.
Já se gastou muita tinta para discutir se a retomada das formas fixas é ou não um retrocesso. No caso de Paulo Henriques Britto, o recurso a tercinas e sonetos é irônico, ao mesmo tempo clássico e moderno. Ele quer "trovar claro" (título de seu livro anterior), ser engenhoso sem ser pomposo (daí um dos poemas se chamar "De Vulgari Eloquentia", referência à obra em que Dante defendia uma língua que fosse igualmente vulgar e erudita).
Quer, em suma, criar "epifanias triviais": "Tudo que pensa passa. Permanece/ a alvenaria do mundo, o que pesa./ O mais é enchimento, e se consome./ As tais Formas eternas, as Idéias,/ e a mente que as inventa, acabam em pó,/ e delas ficam, quando muito, os nomes".
Por isso, há no livro tanto a aridez voluntária de um poema como "Fisiologia da Composição" (que ecoa a "fria natureza da palavra escrita" da "Psicologia da Composição" de João Cabral) quanto humor em relação ao sentimentalismo "kitsch" ("o sofrimento, ai,/ esse nefando pinguim de louça/ sobre o que deveria ser, na quiti-/ nete do eu, uma austera geladeira...") e ironias com as próprias ironias (como em "Biodiversidade", em que ele compara a linguagem poética com uma tartaruga que, tombada sobre o casco, não consegue "reassumir a posição natural").

Jim Morrison
Humor e rigor, subjetividade e racionalismo, lírica e antilírica. Não é fácil definir "Macau". Um livro, enfim, que acumula várias camadas de leitura, às quais devemos acrescentar ainda vestígios da atividade de Britto como tradutor, com poemas em inglês e com as "Nove Variações sobre um Tema de Jim Morrison" -uma surpreendente glosa da canção "Break on Through", do poeta e vocalista da banda The Doors.


Macau    

Autor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (80 págs.)



Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Trecho
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.