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RODAPÉ
"Macau" é província de simetrias poéticas
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Alguns livros recentes de escritores brasileiros trazem
como título o nome de lugares estrangeiros: "Budapeste" (de Chico Buarque), "Lisboa" (ficção
"noir" do fotógrafo J.R. Duran),
"Hong Kong e Outros Poemas"
(de Antônio Moura) ou o ainda
inédito "Mongólia" (de Bernardo
Carvalho, que deve ser lançado
em outubro). É o caso também de
"Macau", novo livro do poeta
Paulo Henriques Britto.
Cada um dos autores acima tem
seus motivos para recorrer a essas
metáforas toponímicas de estranhamento e distância. No caso de
Britto, a antiga colônia portuguesa é mencionada de passagem em
um dos poemas do livro. Mas, ao
mesmo tempo, o nome "Macau"
confere concretude geográfica a
um tema que percorre o livro: a
desproporção entre a ambição expressiva do poeta e os limites que
lhe são impostos ("Tão limitado,
estar aqui e agora,/ dentro de si,
sem poder ir embora,/ dentro de
um espaço mínimo que mal/ se
consegue explorar, esse minúsculo/ império sem território, Macau// sempre à mercê do latejar de
um músculo").
A leitura desse poema pode dar
uma visão geral do trabalho de
Britto. Ele faz parte de uma seção
intitulada "Sete Sonetos Simétricos", em que os 14 versos do soneto tradicional são dispostos de
modo heterodoxo, com cinco estrofes que descrevem uma parábola: o poema começa e termina
com estrofes de dois versos, tendo
ao centro uma estrofe de quatro
-numa simetria reforçada por
um esquema de rimas que começa por versos contíguos, passa para rimas intercaladas, retornando
no final ao cerrado paralelismo do
início.
A simetria entre as palavras tem
aqui um sentido claro: funciona
como uma espécie de paliativo
para as fissuras do "império sem
território" da experiência, que
nos acena com um oceano de possibilidades, mas que nos confina
no "cais úmido e ínfimo do eu".
Ao longo de todo o livro, encontramos uma sucessão de poemas
que respondem ao repertório das
formas fixas e àquele princípio,
formulado por Curtius, de que,
"sem um esquema de configuração pairando em seu espírito, o
poeta não consegue compor". Ou
seja, mesmo um poema sem metrificação e composto por versos
brancos (como algumas vezes
acontece neste livro) deve conservar a memória de um padrão rítmico que faz da poesia uma segunda natureza, uma província à
parte.
Já se gastou muita tinta para discutir se a retomada das formas fixas é ou não um retrocesso. No
caso de Paulo Henriques Britto, o
recurso a tercinas e sonetos é irônico, ao mesmo tempo clássico e
moderno. Ele quer "trovar claro"
(título de seu livro anterior), ser
engenhoso sem ser pomposo (daí
um dos poemas se chamar "De
Vulgari Eloquentia", referência à
obra em que Dante defendia uma
língua que fosse igualmente vulgar e erudita).
Quer, em suma, criar "epifanias
triviais": "Tudo que pensa passa.
Permanece/ a alvenaria do mundo, o que pesa./ O mais é enchimento, e se consome./ As tais Formas eternas, as Idéias,/ e a mente
que as inventa, acabam em pó,/ e
delas ficam, quando muito, os nomes".
Por isso, há no livro tanto a aridez voluntária de um poema como "Fisiologia da Composição"
(que ecoa a "fria natureza da palavra escrita" da "Psicologia da
Composição" de João Cabral)
quanto humor em relação ao sentimentalismo "kitsch" ("o sofrimento, ai,/ esse nefando pinguim
de louça/ sobre o que deveria ser,
na quiti-/ nete do eu, uma austera
geladeira...") e ironias com as próprias ironias (como em "Biodiversidade", em que ele compara a
linguagem poética com uma tartaruga que, tombada sobre o casco, não consegue "reassumir a
posição natural").
Jim Morrison
Humor e rigor, subjetividade e
racionalismo, lírica e antilírica.
Não é fácil definir "Macau". Um
livro, enfim, que acumula várias
camadas de leitura, às quais devemos acrescentar ainda vestígios
da atividade de Britto como tradutor, com poemas em inglês e
com as "Nove Variações sobre
um Tema de Jim Morrison"
-uma surpreendente glosa da
canção "Break on Through", do
poeta e vocalista da banda The
Doors.
Macau
Autor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (80 págs.)
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