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São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2003

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"ELES MUDARAM A IMPRENSA"

Série de entrevistas relata história da mídia

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Esses três pesquisadores produziram um livro fascinante. Focados na cabine de comando dos mais importantes órgãos de imprensa no período 1970-80, eles os apresentam como protagonistas das grandes mudanças em curso no país, naqueles momentos decisivos, ao mesmo tempo em que examinam as intensas metamorfoses pelas quais esses periódicos passavam internamente.
Para isso, interpelaram os próprios timoneiros desses veículos de comunicação, através de entrevistas ao longo das quais eles vão revelando desde suas trajetórias pessoais, até seus projetos de percurso, os obstáculos com que se confrontaram e as metas que cumpriram.
A ênfase dos depoimentos recai, claro, sobre o desafio dos tempos tormentosos, os riscos de mares desconhecidos, os motins, os desvios de rota, a piratagem e o horror das calmarias, quando tudo fica plano, chato e vão, sem os ventos da aventura ou as correntes da imaginação.
Os três pesquisadores em questão são Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman e Dora Rocha, ligados ao Centro de Pesquisa e Documentação (Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, organizadores do volume "Eles Mudaram a Imprensa" (Editora FGV).
Os "condottieri" da imprensa escolhidos foram Evandro Carlos de Andrade, encabeçando "O Globo" e mais tarde também o jornalismo da TV Globo; Alberto Dines, responsável pelo "Jornal do Brasil" e depois articulador do "Observatório da Imprensa"; Mino Carta, criador sucessivamente de "Quatro Rodas", "Jornal da Tarde", "Veja", "Isto É" e "Carta Capital"; Roberto Müller Filho, o estrategista da "Gazeta Mercantil"; Augusto Nunes, reformulador de "O Estado de S.Paulo" e do "Zero Hora" gaúcho e, finalmente, por ser o mais jovem, Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, que levou adiante as reformas introduzidas no jornal por Cláudio Abramo.
Como se vê, uma proeza. Que se traduz, para nós leitores, num autêntico privilégio, o de acompanhar essas criaturas determinadas, submetidas a tensões extremas de diferentes matrizes, tomando decisões e assumindo alternativas em três fronts simultâneos: o ético e político, o jornalístico e o administrativo.
Em nenhuma dessas frentes o confronto foi mais leve, o que era acentuado pela atmosfera opressiva desses anos de chumbo e de radicais transformações tecnológicas, com um impacto forte no âmbito das comunicações.
Da difusão em massa da televisão, da internet, da telefonia digital, dos satélites estacionários, às TV a cabo, o jornalismo impresso tinha que se redefinir num mundo dominado cada vez mais pela espetaculosidade dos recursos orais e visuais. Nenhuma aposta era garantida, nenhum resultado previsível, nenhuma conquista permanente.
E no entanto, para a surpresa do leitor, esses capitães da imprensa renunciam a qualquer imagem de heroísmo, seu pessoal ou do jornalismo em geral, insistindo no caráter coletivo do trabalho, na pressão excepcional das circunstâncias e na inexorabilidade das mudanças.
Por mais diferentes que eles sejam, pelas personalidades, pelas gerações, pela formação, pelos estilos de atuação, esse traço lhes é comum. Suspeitam de qualquer concepção salvacionista do jornalismo, suscetível de alimentar a arrogância de que se tem a posse da verdade. Enfatizam o papel, não menos crucial, de instilar a dúvida, relativizar as posições e nutrir o diálogo que mantém pulsante o espírito público, mantendo um compromisso abnegado com a honestidade, a lisura e a transparência.
Os depoimentos convergem em admitir que esse é um ideal difícil de cumprir à risca; mas é o único pelo qual vale a pena lutar.
O livro não se prende ao período 1970-80, abrangendo desde pelo menos os anos 1950 até hoje. Nem se limita aos personagens entrevistados, envolvendo toda uma plêiade de intelectuais, de Lima Barreto a Cláudio Abramo e Raymundo Faoro. Dado o impacto inovador que tiveram, sente-se a falta de capítulos dedicados à revista "Realidade", aos alternativos e, sobretudo, ao "Pasquim". Prevalece o raio-X de algumas das mais ousadas aventuras culturais na história recente do país. E nada como a história contada por quem a fez e ainda faz.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP e autor de, entre outros, "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras)

Eles Mudaram a Imprensa    
Autores: Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman, Dora Rocha (orgs.)
Editora: FGV
Quanto: R$ 44 (400 págs.)


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