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"DEMONOLOGIA"
Contos fazem rir com humor "made in America"
CYNARA MENEZES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Lembra aquele verão em Jersey, onde havia um "vizinho
que raramente saía de casa, a não
ser para ralhar com os filhos ou ligar o "sprinkler" no gramado desértico"? É o que pergunta a certa
altura o escritor Rick Moody, 41, a
título de criar intimidade com o
leitor dos 13 contos reunidos em
"Demonologia".
Não, a não ser que você seja norte-americano, nada disso soa familiar. Vizinhos não aparam a
grama por aqui, muito menos nas
férias. Tudo bem, já vimos cenas
assim no cinema, mas e daí? Uma
coisa que precisa ser dita sobre a
literatura de Moody, alçado à categoria de revelação da nova safra
de jovens escritores de seu país
com "Tempestade de Gelo",
transformado em filme por Ang
Lee (97), é: se os EUA não ocupam
lugar importante entre seus interesses culturais, dificilmente vai
se sentir capturado por textos que
citam o tempo inteiro marcas de
cereais, lojas de departamentos,
redes de fast food, festas de Halloween ou um tal "Rolodex".
Que diabos afinal é Rolodex? A
tradução da Rocco não se dá nem
mesmo ao trabalho de pôr uma
notinha de pé de página para explicar que se trata de um objeto de
escritório, um pequeno arquivo
de mesa em forma de rolo para
guardar cartões de visita. Desculpe, mas essa palavra não está dicionarizada em português. Pode
procurar.
Dito isso, é preciso reconhecer
que a estranheza dos contos de
Moody consegue, na maioria das
vezes, superar essa matiz local tão
rígido. O primeiro conto, "A
Mansão na Colina", e o último,
que dá nome à coletânea, são
exemplares. Ambos tratam da
morte da irmã do protagonista.
Moody perdeu a sua também.
"Demonologia" vai direto no
ponto, é quase autobiográfico.
Impressiona como o escritor sabe
espantar bem os próprios demônios, simplesmente passando-os
adiante: segura, leitor.
O melhor do livro está no uso
que faz da gente comum do subúrbio, com suas ocupações bizarras, vivendo situações idem: o
empregado do bufê de casamentos, o vendedor com poder de ver
o futuro, o fracassado (no sentido
americano do termo) que se dedica a comercializar ovos de avestruz. Todos meio engraçados, ao
ponto da gargalhada, e logo trágicos, como é do feitio de Moody,
cuja arte narrativa encontra, nesse
caso, seu momento alto no conto
dos avestruzes, "O Zero Duplo".
Pobre vendedor de ovos, tentando encontrar seu lugar ao sol
numa América que está mais para
Capitão Gancho do que para Mamãe Ganso. Primeiro, se lança no
mercado de coelhos angorá; depois, no plantio de teixos (um tipo
de arbusto). Até chegar aos avestruzes, que lhe rendem uma atividade extra como dono de museu
de horrores quando algumas aves
nascem deformadas -ao que tudo indica, por causa da proximidade com uma fábrica de papel
que exala produtos químicos. Cômico, triste, repulsivo e belo.
Outro momento feliz é o conto
"Inelutável Modalidade do Vaginal", em que um casal de intelectuais experimenta um momento
"discutir a relação" turbinado
com Lacan e o "falocentrismo" da
belga Luce Irigary. Um sarro de
Moody com a geração pós-hippie,
impregnada de revolução sexual,
que vai culminar em um exame
ginecológico sobre a mesa da cozinha. Algo como "Eu Sei que
Vou te Amar", de Arnaldo Jabor,
com pitadas de Marta Suplicy.
Em dois dos contos, o autor deixa a ficção propriamente dita de
lado para exercitar de vez seu
americanismo pop, na música e
na literatura. Em "Wilkie Fahnstock: A Caixa de Fitas", pretensamente conta a história de alguém
a partir de sua coleção de fitas cassetes. E lá está a jukebox pessoal
de Moody (ele diz tocar guitarra e
piano), de Tchaikovski a Jimi
Hendrix, de Zeppelin a Bowie, de
Patti Smith a Michael Jackson.
Já em "Livros de Valor Excepcional: Catálogo Número 13",
Moody tenta vender sua suposta
coleção de obras raras, muitas delas inventadas: "Prose by Don",
por exemplo, é uma antologia de
obras escritas por autores de nome Don: entre outros, Don DeLillo, Don Giovanni e Don Vito
Corleone... Puro senso de humor
"made in America", para quem
pode entendê-lo.
Demonologia
Autor: Rick Moody
Tradução: Paulo Reis
Editora: Rocco
Quanto: R$ 37,50 (288 págs.)
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