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São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2003

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"DEMONOLOGIA"

Contos fazem rir com humor "made in America"

CYNARA MENEZES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Lembra aquele verão em Jersey, onde havia um "vizinho que raramente saía de casa, a não ser para ralhar com os filhos ou ligar o "sprinkler" no gramado desértico"? É o que pergunta a certa altura o escritor Rick Moody, 41, a título de criar intimidade com o leitor dos 13 contos reunidos em "Demonologia".
Não, a não ser que você seja norte-americano, nada disso soa familiar. Vizinhos não aparam a grama por aqui, muito menos nas férias. Tudo bem, já vimos cenas assim no cinema, mas e daí? Uma coisa que precisa ser dita sobre a literatura de Moody, alçado à categoria de revelação da nova safra de jovens escritores de seu país com "Tempestade de Gelo", transformado em filme por Ang Lee (97), é: se os EUA não ocupam lugar importante entre seus interesses culturais, dificilmente vai se sentir capturado por textos que citam o tempo inteiro marcas de cereais, lojas de departamentos, redes de fast food, festas de Halloween ou um tal "Rolodex".
Que diabos afinal é Rolodex? A tradução da Rocco não se dá nem mesmo ao trabalho de pôr uma notinha de pé de página para explicar que se trata de um objeto de escritório, um pequeno arquivo de mesa em forma de rolo para guardar cartões de visita. Desculpe, mas essa palavra não está dicionarizada em português. Pode procurar.
Dito isso, é preciso reconhecer que a estranheza dos contos de Moody consegue, na maioria das vezes, superar essa matiz local tão rígido. O primeiro conto, "A Mansão na Colina", e o último, que dá nome à coletânea, são exemplares. Ambos tratam da morte da irmã do protagonista. Moody perdeu a sua também. "Demonologia" vai direto no ponto, é quase autobiográfico. Impressiona como o escritor sabe espantar bem os próprios demônios, simplesmente passando-os adiante: segura, leitor.
O melhor do livro está no uso que faz da gente comum do subúrbio, com suas ocupações bizarras, vivendo situações idem: o empregado do bufê de casamentos, o vendedor com poder de ver o futuro, o fracassado (no sentido americano do termo) que se dedica a comercializar ovos de avestruz. Todos meio engraçados, ao ponto da gargalhada, e logo trágicos, como é do feitio de Moody, cuja arte narrativa encontra, nesse caso, seu momento alto no conto dos avestruzes, "O Zero Duplo".
Pobre vendedor de ovos, tentando encontrar seu lugar ao sol numa América que está mais para Capitão Gancho do que para Mamãe Ganso. Primeiro, se lança no mercado de coelhos angorá; depois, no plantio de teixos (um tipo de arbusto). Até chegar aos avestruzes, que lhe rendem uma atividade extra como dono de museu de horrores quando algumas aves nascem deformadas -ao que tudo indica, por causa da proximidade com uma fábrica de papel que exala produtos químicos. Cômico, triste, repulsivo e belo.
Outro momento feliz é o conto "Inelutável Modalidade do Vaginal", em que um casal de intelectuais experimenta um momento "discutir a relação" turbinado com Lacan e o "falocentrismo" da belga Luce Irigary. Um sarro de Moody com a geração pós-hippie, impregnada de revolução sexual, que vai culminar em um exame ginecológico sobre a mesa da cozinha. Algo como "Eu Sei que Vou te Amar", de Arnaldo Jabor, com pitadas de Marta Suplicy.
Em dois dos contos, o autor deixa a ficção propriamente dita de lado para exercitar de vez seu americanismo pop, na música e na literatura. Em "Wilkie Fahnstock: A Caixa de Fitas", pretensamente conta a história de alguém a partir de sua coleção de fitas cassetes. E lá está a jukebox pessoal de Moody (ele diz tocar guitarra e piano), de Tchaikovski a Jimi Hendrix, de Zeppelin a Bowie, de Patti Smith a Michael Jackson.
Já em "Livros de Valor Excepcional: Catálogo Número 13", Moody tenta vender sua suposta coleção de obras raras, muitas delas inventadas: "Prose by Don", por exemplo, é uma antologia de obras escritas por autores de nome Don: entre outros, Don DeLillo, Don Giovanni e Don Vito Corleone... Puro senso de humor "made in America", para quem pode entendê-lo.


Demonologia   
Autor: Rick Moody
Tradução: Paulo Reis
Editora: Rocco
Quanto: R$ 37,50 (288 págs.)



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