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DRAUZIO VARELLA
Acontecimentos inesquecíveis
Memórias carregadas de
emoção são guardadas a
sete chaves no cérebro. As emoções liberam mediadores bioquímicos que ativam os circuitos de
neurônios responsáveis pela memorização.
Por isso recordamos com tanta
nitidez o dia do nascimento de
um filho, o momento em que recebemos a notícia da morte de uma
pessoa querida, onde estávamos
quando soubemos que Ayrton
Senna sofreu o acidente fatal ou
no instante em que os aviões destruíram as torres de Nova York.
Há exatamente dois anos, no
dia 11 de setembro, eu estava numa conferência num hotel na cidade de Baltimore -a meia hora
de carro de Washington- organizada pelo doutor Robert Gallo,
um dos descobridores do vírus da
Aids.
Participam desse encontro
anual para discutir ciência básica
cerca de 500 pesquisadores da Europa, do Japão e principalmente
dos Estados Unidos. A presença
maciça dos americanos deve-se
não apenas à proximidade geográfica mas à supremacia exercida por eles no campo da biologia
(nela incluída a medicina).
Isso se deve à vontade política
dos americanos, que investem 3%
de seu imenso Produto Nacional
Bruto em pesquisa e tecnologia,
enquanto raros países europeus
chegam a 1% (no Brasil: 0,22%).
Para dar idéia do que esses números representam, dois anos atrás,
enquanto cada país da comunidade européia aplicava ao redor
de 20 milhões de dólares por ano
em estudos sobre a Aids, o orçamento americano ultrapassava
US$ 750 milhões.
Ao tomar conhecimento desses
números, o pesquisador belga Arsene Burny resmungou: "Comparados aos americanos, estamos
brincando de achar a cura da
Aids".
A razão do sucesso dos Estados
Unidos em pesquisa e tecnologia,
no entanto, não pode ser reduzida à simples questão do volume
de recursos alocados.
Lá, os principais laboratórios
são caldeirões em que se misturam cientistas dos quatro cantos
do mundo, atraídos pela possibilidade de descobertas capazes de
lhes assegurar reconhecimento
internacional e patrocínio para
futuros estudos. Do choque resultante dessa miscigenação surge o
caldo de cultura no qual se formarão os grandes talentos.
Ao contrário da hierarquia rígida dos europeus e do apego à vitaliciedade dos cargos tão ao gosto dos latinos, as contratações são
assinadas por período limitado.
Ao término dele, a qualidade dos
trabalhos publicados e os recursos
financeiros públicos ou privados
que o pesquisador foi capaz de
atrair para o laboratório serão
avaliados. Se a avaliação for negativa, o contrato estará cancelado. Na competição, os mais brilhantes serão disputados por universidades e centros de pesquisa a
peso de ouro, como se fossem jogadores de futebol.
Naquele 11 de setembro, a manhã seguia a rotina dos encontros
conduzidos pelo doutor Gallo, em
que cada palestrante apresenta os
dados sobre seus trabalhos durante 15 minutos, seguidos de
mais cinco para perguntas. A exiguidade de tempo é justificada
pelo grande número de expositores e pelo fato de que, segundo o
organizador, "quem não consegue explicar o que faz em 15 minutos é porque não sabe o que está fazendo".
No pódio, um especialista havia
acabado de falar sobre as peripécias das proteínas para se dobrarem dentro das células, quando o
doutor Gallo interrompeu em
tom calmo:
- Acabo de receber a notícia de
que um avião se chocou contra o
World Trade Center. Pode ter sido um ato de terrorismo. Como o
objetivo dessas ações é paralisar o
país, não faremos o que eles esperam.
No mesmo tom, anunciou o palestrante seguinte, que fez sua exposição como se nada houvesse
acontecido. No final dela Robert
Gallo interrompeu mais uma vez:
- Os acontecimentos foram
mais graves. Dois aviões se chocaram e as torres caíram. Vamos interromper a conferência por 30
minutos para que aqueles que
têm parentes em Nova York possam telefonar para casa. Insisto
que estejam todos de volta em 30
minutos para voltarmos à normalidade o mais cedo possível.
Em ordem, saímos do salão de
conferências. O pessoal do hotel
havia espalhado vários televisores
pelo saguão. Parei diante de um
deles no meio de um círculo de 40
ou 50 pessoas. O locutor falava sobre a tragédia. De repente, na tela
surgiu a imagem do segundo
avião atingindo a torre. Atrás de
mim ouvi a voz abafada de um
homem: "No!". Ao meu lado, uma
pesquisadora da Universidade de
Stanford tirou um lencinho e enxugou as lágrimas com delicadeza, antes que escorressem pelo
rosto.
Foram as únicas manifestações
daquelas pessoas em volta da TV.
Não foi possível reiniciar o
evento em 30 minutos, mas, uma
hora depois, estávamos todos sentados para assistir à apresentação
seguinte. Com os aviões proibidos
de voar, alguns conferencistas faltaram, mas todos foram substituídos. O evento continuou até
sábado, exatamente conforme
planejado.
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