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"Nós somos levados para a violência"
José Padilha afirma que quis demonstrar com "Tropa de Elite" como as "regras do jogo" determinam as escolhas dos indivíduos
Diretor diz que personagem do filme que busca conciliar "éticas incompatíveis" e termina violento metaforiza dinâmica social brasileira
DA REPORTAGEM LOCAL
O diretor José Padilha fala a
seguir sobre pirataria, violência
urbana no Brasil e a representação da tortura no cinema.
(SILVANA ARANTES)
FOLHA - Especialistas do mercado
de cinema dividem-se ao avaliar o
efeito da pirataria de que "Tropa de
Elite" foi vítima. Uns acham que ela
solapou as chances do filme na bilheteria; outros, que não poderia haver melhor forma de promovê-lo.
Com qual das alternativas você fica?
JOSÉ PADILHA - Nenhuma. Fico
com minha ignorância sobre
esse tipo de fenômeno. Acho
que o filme pode ir muito bem
de público, nas atuais circunstâncias, e também pode perder
muito. Não sei o que esperar.
Mas não tenho alternativa.
FOLHA - O secretário-executivo do
Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto, disse que a pirataria de "Tropa
de Elite" denota a necessidade de a
indústria investir mais em prevenção. Avalia que se preveniu contra a
pirataria aquém do que poderia?
PADILHA - Está claro que, como
nosso filme vazou, a prevenção
não foi adequada. Por outro lado, é muito difícil impedir pirataria, o que não é uma desculpa.
A pirataria só vai diminuir
quando as pessoas a virem tal
qual é. É impressionante que
muita gente boa e até gente ligada ao governo seja míope sobre o que a pirataria de fato é.
É uma besteira a discussão da
pirataria sob uma ótica meramente cultural. Pirataria não é
isso. É sonegação, trabalho informal, corrupção, competição
desleal. Todos esses aspectos,
essenciais, são ignorados no debate. Tenho visto um despreparo intelectual enorme da parte
de quem deveria ser intelectualmente preparado para falar
sobre as coisas.
FOLHA - Refere-se ao ministro da
Cultura, Gilberto Gil?
PADILHA - Não estou personalizando. Não estou falando do
Gilberto Gil, porque já li na internet muita coisa de muita
gente que me deixa estarrecido.
É realmente extraordinário
que isso tenha virado uma discussão sobre o conteúdo cultural e sua democratização.
FOLHA - Ao mostrar "Tropa de Elite" ao governador do Rio, Sérgio Cabral, você buscou interseção com a esfera política por atitudes concretas em relação ao tema do filme?
PADILHA - A sessão para o governador foi uma iniciativa de
um amigo em comum. Se o filme provocar na esfera política
reações à situação que retrata,
vou ficar feliz. Mas sou cético
quanto à possibilidade de qualquer filme modificar a realidade. Tenho plena consciência de
que meu filme é insignificante
diante da realidade que retrata.
Para mudar essa realidade, o
Brasil tem que crescer 5% ao
ano durante um prazo grande, a
renda tem que ser distribuída,
deve haver investimento em
educação, o governo tem que
ter superávit fiscal para investir direito nas polícias ou tem
que discutir a legislação relativa às drogas. É uma situação
tão complicada que é irreal
imaginar que o filme possa fazer alguma diferença.
FOLHA - No livro "Elite da Tropa", o
policial que é também universitário
torna-se progressivamente "menos
caveira [oficial do Bope] e mais estudante de direito". No filme "Tropa
de Elite", ele faz o percurso contrário. Isso deriva da decisão de retratar
os policiais do Bope como heróis?
PADILHA - O livro e o filme não
são a mesma coisa, embora falem sobre a mesma realidade.
Há um personagem no filme
inspirado no [co-autor do livro,
André] Batista, que é o [policial
e universitário] Matias.
Matias é o personagem-chave do filme. Ele faz a metáfora
que me interessa mais, ao tentar participar de mundos incompatíveis. É um policial convencional que vai para o Bope e, ao mesmo tempo, estuda numa
faculdade. São grupos sociais
com éticas incompatíveis entre
si. Matias tenta compatibilizar
essas éticas e é levado a se tornar uma pessoa violenta.
O que é a sociedade brasileira? É uma sociedade que tenta
ter todas as éticas juntas. E o
que acontece? Somos levados
para a violência.
No livro, não tem isso. O cara
vai saindo cada vez mais do Bope, para virar estudante de direito. Cá entre nós, o André Batista não é advogado, é PM.
Quanto ao herói, o herói brasileiro é "macunaímico" mesmo, não é certinho. Nem sei se,
na definição clássica de herói,
você pode atribuir heroísmo
aos heróis que a gente vê nos
filmes brasileiros.
FOLHA - É para relativizar o heroísmo a citação introdutória de "Tropa
de Elite", segundo a qual o comportamento do indivíduo é determinado por suas circunstâncias?
PADILHA - Aquilo não é uma
opinião, mas o relato de um experimento do psicólogo Stanley Milgram. Quero explicitar
isso. Um dos melhores modelos
para estudar processos sociais
é a teoria dos jogos, do matemático John von Newmann. Você
tenta modelar as regras da sociedade e, no contexto daquelas
regras, os jogadores, no caso, as
pessoas, fazem suas escolhas. É
isso o que você vê no filme.
Se você olhar o processo social subjacente à violência urbana no Brasil, perceberá várias regras. A regra do jogo de um policial convencional é: você vai receber pouco treinamento, vai participar de uma
instituição que vai te remunerar muito mal e vai entrar numa favela e dar de cara com traficantes altamente armados.
Se você é um estudante numa
faculdade, seus amigos consomem droga e você quer consumir droga, sendo que na nossa
sociedade é ilegal consumir
droga, a regra para você é: você
vai ter que comprar na favela, e
o cara que vender para você vai
comprar bala e arma com o seu
dinheiro e vai atirar nos policiais que forem prendê-lo.
Se você é um policial honesto, está dentro de uma corporação que tem muitos policiais
desonestos, mas em que existe
um batalhão que é extremamente violento, mas é honesto,
e você entra para esse batalhão,
a regra é: você vai entrar numa
favela, e o traficante vai saber
que com você não tem acordo.
Então, para você, é a guerra.
Ou seja, as pessoas fazem
suas escolhas dentro de um
contexto. Não existe liberdade
absoluta. O filme mostra isso.
Essa citação no início é uma
maneira de preparar o espectador para essa viagem. Espero
que, no final, ele se dê conta de
que o jogo vai ser esse, enquanto a regra não mudar.
FOLHA - Por que escolheu exibir no
filme cenas explícitas de tortura?
PADILHA - A tortura não é um
detalhe no assunto do meu filme. O que você ia achar do meu
filme se a polícia e o Bope não
torturassem? As pessoas têm
escolha quando decidem ver
um filme. Se o cara não gosta de
ver tortura, se faz mal para ele,
então ele não vai ver "Os Bons
Companheiros", "Cassino",
"Laranja Mecânica" ou um filme sobre a polícia chamado
"Tropa de Elite". Tudo certo.
Agora, o cinema é uma forma
de expressão livre e me incomoda a crítica que queira normatizá-lo. Não pode fazer filme
que tenha tortura. Por quê? A
história do cinema mostra muitos filmes maravilhosos que
têm tortura.
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