São Paulo, quinta-feira, 20 de setembro de 2007

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"Nós somos levados para a violência"

José Padilha afirma que quis demonstrar com "Tropa de Elite" como as "regras do jogo" determinam as escolhas dos indivíduos

Diretor diz que personagem do filme que busca conciliar "éticas incompatíveis" e termina violento metaforiza dinâmica social brasileira

DA REPORTAGEM LOCAL

O diretor José Padilha fala a seguir sobre pirataria, violência urbana no Brasil e a representação da tortura no cinema. (SILVANA ARANTES)

FOLHA - Especialistas do mercado de cinema dividem-se ao avaliar o efeito da pirataria de que "Tropa de Elite" foi vítima. Uns acham que ela solapou as chances do filme na bilheteria; outros, que não poderia haver melhor forma de promovê-lo. Com qual das alternativas você fica?
JOSÉ PADILHA
- Nenhuma. Fico com minha ignorância sobre esse tipo de fenômeno. Acho que o filme pode ir muito bem de público, nas atuais circunstâncias, e também pode perder muito. Não sei o que esperar. Mas não tenho alternativa.

FOLHA - O secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto, disse que a pirataria de "Tropa de Elite" denota a necessidade de a indústria investir mais em prevenção. Avalia que se preveniu contra a pirataria aquém do que poderia?
PADILHA
- Está claro que, como nosso filme vazou, a prevenção não foi adequada. Por outro lado, é muito difícil impedir pirataria, o que não é uma desculpa.
A pirataria só vai diminuir quando as pessoas a virem tal qual é. É impressionante que muita gente boa e até gente ligada ao governo seja míope sobre o que a pirataria de fato é.
É uma besteira a discussão da pirataria sob uma ótica meramente cultural. Pirataria não é isso. É sonegação, trabalho informal, corrupção, competição desleal. Todos esses aspectos, essenciais, são ignorados no debate. Tenho visto um despreparo intelectual enorme da parte de quem deveria ser intelectualmente preparado para falar sobre as coisas.

FOLHA - Refere-se ao ministro da Cultura, Gilberto Gil?
PADILHA
- Não estou personalizando. Não estou falando do Gilberto Gil, porque já li na internet muita coisa de muita gente que me deixa estarrecido. É realmente extraordinário que isso tenha virado uma discussão sobre o conteúdo cultural e sua democratização.

FOLHA - Ao mostrar "Tropa de Elite" ao governador do Rio, Sérgio Cabral, você buscou interseção com a esfera política por atitudes concretas em relação ao tema do filme?
PADILHA
- A sessão para o governador foi uma iniciativa de um amigo em comum. Se o filme provocar na esfera política reações à situação que retrata, vou ficar feliz. Mas sou cético quanto à possibilidade de qualquer filme modificar a realidade. Tenho plena consciência de que meu filme é insignificante diante da realidade que retrata.
Para mudar essa realidade, o Brasil tem que crescer 5% ao ano durante um prazo grande, a renda tem que ser distribuída, deve haver investimento em educação, o governo tem que ter superávit fiscal para investir direito nas polícias ou tem que discutir a legislação relativa às drogas. É uma situação tão complicada que é irreal imaginar que o filme possa fazer alguma diferença.

FOLHA - No livro "Elite da Tropa", o policial que é também universitário torna-se progressivamente "menos caveira [oficial do Bope] e mais estudante de direito". No filme "Tropa de Elite", ele faz o percurso contrário. Isso deriva da decisão de retratar os policiais do Bope como heróis?
PADILHA
- O livro e o filme não são a mesma coisa, embora falem sobre a mesma realidade. Há um personagem no filme inspirado no [co-autor do livro, André] Batista, que é o [policial e universitário] Matias.
Matias é o personagem-chave do filme. Ele faz a metáfora que me interessa mais, ao tentar participar de mundos incompatíveis. É um policial convencional que vai para o Bope e, ao mesmo tempo, estuda numa faculdade. São grupos sociais com éticas incompatíveis entre si. Matias tenta compatibilizar essas éticas e é levado a se tornar uma pessoa violenta.
O que é a sociedade brasileira? É uma sociedade que tenta ter todas as éticas juntas. E o que acontece? Somos levados para a violência.
No livro, não tem isso. O cara vai saindo cada vez mais do Bope, para virar estudante de direito. Cá entre nós, o André Batista não é advogado, é PM.
Quanto ao herói, o herói brasileiro é "macunaímico" mesmo, não é certinho. Nem sei se, na definição clássica de herói, você pode atribuir heroísmo aos heróis que a gente vê nos filmes brasileiros.

FOLHA - É para relativizar o heroísmo a citação introdutória de "Tropa de Elite", segundo a qual o comportamento do indivíduo é determinado por suas circunstâncias?
PADILHA
- Aquilo não é uma opinião, mas o relato de um experimento do psicólogo Stanley Milgram. Quero explicitar isso. Um dos melhores modelos para estudar processos sociais é a teoria dos jogos, do matemático John von Newmann. Você tenta modelar as regras da sociedade e, no contexto daquelas regras, os jogadores, no caso, as pessoas, fazem suas escolhas. É isso o que você vê no filme.
Se você olhar o processo social subjacente à violência urbana no Brasil, perceberá várias regras. A regra do jogo de um policial convencional é: você vai receber pouco treinamento, vai participar de uma instituição que vai te remunerar muito mal e vai entrar numa favela e dar de cara com traficantes altamente armados.
Se você é um estudante numa faculdade, seus amigos consomem droga e você quer consumir droga, sendo que na nossa sociedade é ilegal consumir droga, a regra para você é: você vai ter que comprar na favela, e o cara que vender para você vai comprar bala e arma com o seu dinheiro e vai atirar nos policiais que forem prendê-lo.
Se você é um policial honesto, está dentro de uma corporação que tem muitos policiais desonestos, mas em que existe um batalhão que é extremamente violento, mas é honesto, e você entra para esse batalhão, a regra é: você vai entrar numa favela, e o traficante vai saber que com você não tem acordo.
Então, para você, é a guerra. Ou seja, as pessoas fazem suas escolhas dentro de um contexto. Não existe liberdade absoluta. O filme mostra isso.
Essa citação no início é uma maneira de preparar o espectador para essa viagem. Espero que, no final, ele se dê conta de que o jogo vai ser esse, enquanto a regra não mudar.

FOLHA - Por que escolheu exibir no filme cenas explícitas de tortura?
PADILHA
- A tortura não é um detalhe no assunto do meu filme. O que você ia achar do meu filme se a polícia e o Bope não torturassem? As pessoas têm escolha quando decidem ver um filme. Se o cara não gosta de ver tortura, se faz mal para ele, então ele não vai ver "Os Bons Companheiros", "Cassino", "Laranja Mecânica" ou um filme sobre a polícia chamado "Tropa de Elite". Tudo certo.
Agora, o cinema é uma forma de expressão livre e me incomoda a crítica que queira normatizá-lo. Não pode fazer filme que tenha tortura. Por quê? A história do cinema mostra muitos filmes maravilhosos que têm tortura.


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