São Paulo, quinta-feira, 20 de setembro de 2007

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NINA HORTA

As piores comidas da minha vida


Fizeram um concurso de quem engolia mais pimentinhas. Os espertos fingiam que engoliam, e a capiau aqui engolia mesmo

OUTRO DIA uma revista me telefonou pedindo que eu escrevesse minhas lembranças sobre sorvete. Respondi que só me lembrava com emoção de uns picolés do interior, vendidos numa padaria, que saíamos chupando pela rua de terra até que o colorido desaparecesse e só ficasse o miolo de gelo.
Talvez por causa desse inesquecível picolé, das férias, das mangueiras, do ribeirão, do pé de lima-de-bico, dos primos bonitos, perdi o gosto por outros sorvetes. Entendam. Se vou a algum lugar e me dão um belo sorvete, adoro. Só não tenho o impulso ou o desejo primeiro.
Sugeri à revista escrever sobre as piores comidas que já comi. Acho que imaginou fígado com abacate e chocolate, ou experiências viscerais, como as do Bourdain com suas cobras e lagartos. Não, não era nada disso. Eu, cá dentro, sei o que ela queria. Comida de alma.
Muito humildemente, conservadas as distâncias, o meu primeiro artigo na Folha bastaria para ter me consagrado como a cronista das comidas de alma. Como "A Banda" do Chico, "Conceição" do Cauby. E o engraçado é que as piores comidas que já comi não estão ligadas ao gosto, mas às situações.
Vejamos. Antes dos cinco anos, nessas mesmas férias de roça, fizeram um concurso de quem engolia mais pimentinhas vermelhas de um pezinho pojado delas. Os espertos desafiadores fingiam que engoliam, e a capiau aqui engolia mesmo, até que os próprios primos me socorreram quando comecei a sentir todo o ardor do mundo no estômago. Ainda lá fui convidada para "madrinha de colo" de uma criança, do circo, se não me engano. Depois seria servida uma lauta mesa de doces. Saí correndo e chorando quando vi a mesa posta, com as latas ainda fechadas, brilhando.
Lata de goiabada, lata de bananada, lata de pessegada, marmelada... Pena que não se possa fazer o mesmo depois de adulto e sair correndo, espaventados, das gororobas caras que nos servem nos restaurantes.
No Rio de Janeiro, sozinha no apartamento com uma empregada, fui comer o pé de um frango perfeitamente cozido, e ele se mexeu na minha boca, mexeu e remexeu, abriu-se e embatucou, preso. Urros dignos de Hitchcock, e não era para menos. E, em Nova York, talvez tenha tido a refeição mais dolorida.
Fui almoçar sozinha no Boulud pela segunda vez na vida. Ele me cobriu de cordialidade, com menu-degustação, provinhas disto e daquilo, vinhos completamente combinados, três sobremesas. Saí em estado de graça e de enfaramento. Ao chegar ao hotel, havia um recado na secretária eletrônica da melhor amiga de minha filha. "Hoje é Pessach. Você é nossa única convidada, mamãe fez uma vitela."
O tempo só deu para umas flores compradas na esquina, um táxi e a tortura dos canapés, das especialidades judaicas, da vitela. Acho, com certeza, que comer até estourar é pior que passar fome. E vocês acreditam que a certa altura a tortura se neutralizou? Instada, repeti a sobremesa. Essa foi, seguramente, a maior saia justa. Boulud e mãe judia combinados.
Em Paris, no dia em que cheguei, numa brasserie pedi andouilletes e, só depois de algumas mordidas e pelo cheiro de tripa de vaca, me dei conta da burrice e que em minutos eu começaria a enlouquecer como a vaca louca e velha. Naquela época, os bons restaurantes só serviam ostras, peixe, pombos...
Esta última empregada tem contribuído com péssimas refeições por enorme desconhecimento do que se come aqui em São Paulo.
Uma cuia de farofa. Só. Ou batatas doces. Só. E não é que eu como, apesar de querer fingir desgosto para que ela aprenda. Quase sufoco com a farofa, mas adoro. As batatas doces, assadas com a casca, lá pelas seis horas com um cafezinho não são de todo más. Até viciam, talvez sejam comida de alma.

ninahorta@uol.com.br


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