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NINA HORTA
As piores comidas da minha vida
Fizeram um concurso de quem engolia mais pimentinhas. Os espertos fingiam que engoliam, e a capiau aqui engolia mesmo
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OUTRO DIA uma revista me telefonou pedindo que eu escrevesse minhas lembranças
sobre sorvete. Respondi que só me
lembrava com emoção de uns picolés do interior, vendidos numa padaria, que saíamos chupando pela rua
de terra até que o colorido desaparecesse e só ficasse o miolo de gelo.
Talvez por causa desse inesquecível picolé, das férias, das mangueiras, do ribeirão, do pé de lima-de-bico, dos primos bonitos, perdi o gosto
por outros sorvetes. Entendam. Se
vou a algum lugar e me dão um belo
sorvete, adoro. Só não tenho o impulso ou o desejo primeiro.
Sugeri à revista escrever sobre as
piores comidas que já comi. Acho
que imaginou fígado com abacate e
chocolate, ou experiências viscerais,
como as do Bourdain com suas cobras e lagartos. Não, não era nada
disso. Eu, cá dentro, sei o que ela
queria. Comida de alma.
Muito humildemente, conservadas as distâncias, o meu primeiro artigo na Folha bastaria para ter me
consagrado como a cronista das
comidas de alma. Como "A Banda"
do Chico, "Conceição" do Cauby. E
o engraçado é que as piores comidas que já comi não estão ligadas
ao gosto, mas às situações.
Vejamos. Antes dos cinco anos,
nessas mesmas férias de roça, fizeram um concurso de quem engolia
mais pimentinhas vermelhas de
um pezinho pojado delas. Os espertos desafiadores fingiam que
engoliam, e a capiau aqui engolia
mesmo, até que os próprios primos
me socorreram quando comecei a
sentir todo o ardor do mundo no
estômago. Ainda lá fui convidada
para "madrinha de colo" de uma
criança, do circo, se não me engano. Depois seria servida uma lauta
mesa de doces. Saí correndo e chorando quando vi a mesa posta, com
as latas ainda fechadas, brilhando.
Lata de goiabada, lata de bananada,
lata de pessegada, marmelada... Pena que não se possa fazer o mesmo
depois de adulto e sair correndo,
espaventados, das gororobas caras
que nos servem nos restaurantes.
No Rio de Janeiro, sozinha no
apartamento com uma empregada,
fui comer o pé de um frango perfeitamente cozido, e ele se mexeu na
minha boca, mexeu e remexeu,
abriu-se e embatucou, preso. Urros
dignos de Hitchcock, e não era para
menos. E, em Nova York, talvez tenha tido a refeição mais dolorida.
Fui almoçar sozinha no Boulud pela segunda vez na vida. Ele me cobriu de cordialidade, com menu-degustação, provinhas disto e daquilo, vinhos completamente combinados, três sobremesas. Saí em
estado de graça e de enfaramento.
Ao chegar ao hotel, havia um recado na secretária eletrônica da melhor amiga de minha filha. "Hoje é
Pessach. Você é nossa única convidada, mamãe fez uma vitela."
O tempo só deu para umas flores
compradas na esquina, um táxi e a
tortura dos canapés, das especialidades judaicas, da vitela. Acho,
com certeza, que comer até estourar é pior que passar fome. E vocês
acreditam que a certa altura a tortura se neutralizou? Instada, repeti
a sobremesa. Essa foi, seguramente, a maior saia justa. Boulud e mãe
judia combinados.
Em Paris, no dia em que cheguei,
numa brasserie pedi andouilletes
e, só depois de algumas mordidas e
pelo cheiro de tripa de vaca, me dei
conta da burrice e que em minutos
eu começaria a enlouquecer como
a vaca louca e velha. Naquela época, os bons restaurantes só serviam
ostras, peixe, pombos...
Esta última empregada tem contribuído com péssimas refeições
por enorme desconhecimento do
que se come aqui em São Paulo.
Uma cuia de farofa. Só. Ou batatas
doces. Só. E não é que eu como,
apesar de querer fingir desgosto
para que ela aprenda. Quase sufoco
com a farofa, mas adoro. As batatas
doces, assadas com a casca, lá pelas
seis horas com um cafezinho não
são de todo más. Até viciam, talvez
sejam comida de alma.
ninahorta@uol.com.br
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