|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DRAUZIO VARELLA
O pânico do antraz
Cartas com o bacilo antraz têm o dom de espalhar
insegurança. A possibilidade de
receber pelo correio um pozinho
branco que faz ferida na pele e
pode ser fatal para os pulmões invoca antigos pavores coletivos. A
imagem da peste negra que matou um terço dos europeus na
Idade Média vem logo à cabeça
de todos.
O objetivo deste artigo é deixar
claro que o antraz das cartas anônimas não tem a menor probabilidade de causar epidemia. Para
tanto, vamos conhecer o inimigo.
O antraz é um bacilo minúsculo, 50 vezes menor do que qualquer célula do nosso corpo. No
microscópio, aparece como filamentos violáceos que se alinham
em fileiras, um colado ao outro,
como os nós num tronco de bambu. Para o olhar humano, o antraz seria apenas outra bactéria
insignificante que infecta o gado,
não fosse possuidor de uma característica biológica especial: a
capacidade de formar esporos.
O esporo se forma ativamente
quando o bacilo entra em época
de vacas magras ou quando o
meio se torna inóspito. Nessas
condições, ele elimina toda a
água de seu interior, agrega as
proteínas da membrana numa
carapaça seca em volta de seus
genes para resguardá-los e reduz
as reações metabólicas a zero. Pára de respirar, excretar, produzir
energia e reproduzir-se, o tamanho diminui até dez vezes. Nesse
estado, pode hibernar durante
décadas no solo, até encontrar
um hospedeiro que lhe forneça
água, oxigênio, aminoácidos e
glicose para voltar à forma de bacilo infectante outra vez.
Estratégia de sobrevivência invejável: fingir-se de morto para
ressuscitar no futuro num ambiente mais acolhedor. Quem não
gostaria de poder?
O contato desses esporos com o
homem quase nunca é caracterizado pela agressividade extrema
porque a bactéria tem muita dificuldade para penetrar a pele íntegra. Só quando encontra uma solução de continuidade provocada
por um pequeno corte ou arranhão, ela consegue invadir e se
multiplicar no local. Nesse caso,
forma feridas pouco dolorosas
chamadas carbúnculos, fáceis de
curar com penicilina e outros antibióticos comuns.
Raramente, porém, acontecem
casos graves da doença. É quando
os esporos são inalados ou deglutidos com alimentos que os contêm. Nessas ocasiões raras, a
doença pode levar à septicemia e
morte por choque toxêmico.
A maior epidemia natural de
carbúnculo que se tem notícia foi
a que ocorreu no Zimbábue entre
1979 e 1985: mais de 10 mil casos,
praticamente todos limitados à
forma cutânea da doença.
Uma característica que limita
muito a capacidade do antraz em
provocar epidemias é a de que o
bacilo não se transmite de uma
pessoa infectada para outra.
Se não existe transmissão inter-humana e os esporos encontram
dificuldade para penetrar a pele
íntegra, o método de enviá-los pelo correio para jornalistas e políticos não tem fôlego para causar
mais do que uns poucos casos de
impacto jornalístico. Para matar
em massa, os terroristas precisariam empregar uma estratégia
bem mais complexa: espalhar os
esporos em aerossol sobre as grandes cidades, de avião.
Embora os japoneses tenham
usado o antraz contra os chineses
na Manchúria na década de 1930,
não há experiência documentada
cientificamente com esse tipo de
ato criminoso. Tudo leva a crer,
no entanto, que a tecnologia necessária para sua execução esteja
muito distante de pequenos grupos de fanáticos despreparados
cientificamente.
Em 1979, num laboratório de
microbiologia militar da cidade
soviética de Sverdlovsk, houve vazamento de um aerossol de antraz, inodoro e invisível. Nos 43
dias que se seguiram, 79 moradores adquiriram a infecção. Deles,
68 (86%) morreram, demonstrando a letalidade da infecção
quando ocorre pela via inalatória. Passados os 43 dias, nenhum
caso voltou a ocorrer na região,
apesar do absoluto descaso das
autoridades soviéticas em descontaminar o ambiente e vacinar
a população (de 1 milhão de habitantes de Sverdlovsk apenas 47
mil tiveram o privilégio de receber a vacina).
Em 1970, especialistas da Organização Mundial da Saúde estimaram que uma bomba de antraz jogada dos céus sobre uma cidade de 5 milhões de habitantes,
precisaria ter 50 quilos de esporos
para conseguir infectar 250 mil
pessoas e matar 100 mil delas -o
número de mortos em Hiroshima.
Em 1997, um estudo do escritório de avaliação tecnológica do
Congresso americano calculou
que, para provocar a morte de 130
mil a 3 milhões de pessoas na área
de Washington, precisaria ser jogada uma bomba com cem quilos
de esporos.
Se lembrarmos que cada esporo
mede um milésimo de milímetro,
é possível fazer idéia do desafio
tecnológico que seria construir e
manipular uma bomba dessas.
Para produzir tais quantidades
de esporos, é preciso dominar técnicas industriais de cultivo e fermentação de bactérias que só
existem nos grandes laboratórios
científicos dos Estados Unidos, da
Europa Ocidental e do Japão, custeados pelo Estado ou pelas grandes multinacionais do setor farmacêutico.
Pode ser que, no futuro, esse tipo de tecnologia seja simplificado
a tal ponto que biobombas possam ser produzidas em fundo de
quintal por um maníaco qualquer. No momento, entretanto, isso não passa de ficção científica.
Texto Anterior: Artes plásticas: Exposição brasileira estréia com críticas em Nova York Próximo Texto: Panorâmica - Evento: Folha promove debate sobre conflitos étnicos Índice
|