São Paulo, sábado, 20 de outubro de 2001

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DRAUZIO VARELLA

O pânico do antraz

Cartas com o bacilo antraz têm o dom de espalhar insegurança. A possibilidade de receber pelo correio um pozinho branco que faz ferida na pele e pode ser fatal para os pulmões invoca antigos pavores coletivos. A imagem da peste negra que matou um terço dos europeus na Idade Média vem logo à cabeça de todos.
O objetivo deste artigo é deixar claro que o antraz das cartas anônimas não tem a menor probabilidade de causar epidemia. Para tanto, vamos conhecer o inimigo.
O antraz é um bacilo minúsculo, 50 vezes menor do que qualquer célula do nosso corpo. No microscópio, aparece como filamentos violáceos que se alinham em fileiras, um colado ao outro, como os nós num tronco de bambu. Para o olhar humano, o antraz seria apenas outra bactéria insignificante que infecta o gado, não fosse possuidor de uma característica biológica especial: a capacidade de formar esporos.
O esporo se forma ativamente quando o bacilo entra em época de vacas magras ou quando o meio se torna inóspito. Nessas condições, ele elimina toda a água de seu interior, agrega as proteínas da membrana numa carapaça seca em volta de seus genes para resguardá-los e reduz as reações metabólicas a zero. Pára de respirar, excretar, produzir energia e reproduzir-se, o tamanho diminui até dez vezes. Nesse estado, pode hibernar durante décadas no solo, até encontrar um hospedeiro que lhe forneça água, oxigênio, aminoácidos e glicose para voltar à forma de bacilo infectante outra vez.
Estratégia de sobrevivência invejável: fingir-se de morto para ressuscitar no futuro num ambiente mais acolhedor. Quem não gostaria de poder?
O contato desses esporos com o homem quase nunca é caracterizado pela agressividade extrema porque a bactéria tem muita dificuldade para penetrar a pele íntegra. Só quando encontra uma solução de continuidade provocada por um pequeno corte ou arranhão, ela consegue invadir e se multiplicar no local. Nesse caso, forma feridas pouco dolorosas chamadas carbúnculos, fáceis de curar com penicilina e outros antibióticos comuns.
Raramente, porém, acontecem casos graves da doença. É quando os esporos são inalados ou deglutidos com alimentos que os contêm. Nessas ocasiões raras, a doença pode levar à septicemia e morte por choque toxêmico.
A maior epidemia natural de carbúnculo que se tem notícia foi a que ocorreu no Zimbábue entre 1979 e 1985: mais de 10 mil casos, praticamente todos limitados à forma cutânea da doença.
Uma característica que limita muito a capacidade do antraz em provocar epidemias é a de que o bacilo não se transmite de uma pessoa infectada para outra.
Se não existe transmissão inter-humana e os esporos encontram dificuldade para penetrar a pele íntegra, o método de enviá-los pelo correio para jornalistas e políticos não tem fôlego para causar mais do que uns poucos casos de impacto jornalístico. Para matar em massa, os terroristas precisariam empregar uma estratégia bem mais complexa: espalhar os esporos em aerossol sobre as grandes cidades, de avião.
Embora os japoneses tenham usado o antraz contra os chineses na Manchúria na década de 1930, não há experiência documentada cientificamente com esse tipo de ato criminoso. Tudo leva a crer, no entanto, que a tecnologia necessária para sua execução esteja muito distante de pequenos grupos de fanáticos despreparados cientificamente.
Em 1979, num laboratório de microbiologia militar da cidade soviética de Sverdlovsk, houve vazamento de um aerossol de antraz, inodoro e invisível. Nos 43 dias que se seguiram, 79 moradores adquiriram a infecção. Deles, 68 (86%) morreram, demonstrando a letalidade da infecção quando ocorre pela via inalatória. Passados os 43 dias, nenhum caso voltou a ocorrer na região, apesar do absoluto descaso das autoridades soviéticas em descontaminar o ambiente e vacinar a população (de 1 milhão de habitantes de Sverdlovsk apenas 47 mil tiveram o privilégio de receber a vacina).
Em 1970, especialistas da Organização Mundial da Saúde estimaram que uma bomba de antraz jogada dos céus sobre uma cidade de 5 milhões de habitantes, precisaria ter 50 quilos de esporos para conseguir infectar 250 mil pessoas e matar 100 mil delas -o número de mortos em Hiroshima.
Em 1997, um estudo do escritório de avaliação tecnológica do Congresso americano calculou que, para provocar a morte de 130 mil a 3 milhões de pessoas na área de Washington, precisaria ser jogada uma bomba com cem quilos de esporos.
Se lembrarmos que cada esporo mede um milésimo de milímetro, é possível fazer idéia do desafio tecnológico que seria construir e manipular uma bomba dessas. Para produzir tais quantidades de esporos, é preciso dominar técnicas industriais de cultivo e fermentação de bactérias que só existem nos grandes laboratórios científicos dos Estados Unidos, da Europa Ocidental e do Japão, custeados pelo Estado ou pelas grandes multinacionais do setor farmacêutico.
Pode ser que, no futuro, esse tipo de tecnologia seja simplificado a tal ponto que biobombas possam ser produzidas em fundo de quintal por um maníaco qualquer. No momento, entretanto, isso não passa de ficção científica.



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