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São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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LIVROS/LANÇAMENTOS

Autora colombiana recria universo de prostituição na zona petroleira do país durante os anos 50

Restrepo leva Jorge Amado à Colômbia

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

A fotografia de uma prostituta que viveu nos anos 40 e 50 na região petroleira colombiana de Barrancabermeja ficou pregada ao computador de Laura Restrepo, 53, durante todo o tempo em que a autora passou escrevendo "A Noiva Escura". De olhar misterioso, olhos puxados e cabelos desgrenhados, a moça era de uma beleza fora do comum, "mas trazia nos traços do rosto um sinal trágico que a transformaria antes em um mito do que em uma lembrança", diz Restrepo à Folha.
A partir da imagem, e de uma larga pesquisa entre prostitutas e petroleiros que vivem hoje na região -agora palco dos conflitos entre grupos guerrilheiros e o Exército da Colômbia-, Restrepo construiu um romance com linguagem jornalística. "A Noiva Escura" mistura depoimentos fictícios baseados nas histórias reais que coletou com uma história de amor criada por ela mesma.
Restrepo é uma das escritoras mais importantes da Colômbia e também militante. Em 1984, a convite do então presidente colombiano Belisario Betancur, integrou uma comissão de paz que tentou estabelecer diálogo entre guerrilheiros e governo.
Em "A Noiva Escura" acompanhamos a história de Sayonara. Menina meio índia meio branca, ela chegou a Tora (nome antigo de Barrancabermeja) ainda adolescente. "Quero ser puta", apresentou-se. Introduzida então a Todos los Santos, dona de um dos bordéis mais importantes da zona do meretrício local, Sayonara foi iniciada na profissão. Virou mito por sua beleza, pelos corações partidos que deixou e pelo ar um tanto desinteressado que deitava às coisas mundanas.
Restrepo vê a prostituição da época envolta em certo glamour. Para reconstruir esse universo, baseou-se em Jorge Amado (1912-2001) e recheou a narrativa com referências a prostitutas célebres da literatura. Muitas personagens femininas são homenageadas, da Tereza Batista de Amado à Moll Flanders de Daniel Defoe.
Leia os principais trechos da entrevista que Restrepo deu, por telefone, de Bogotá.

Folha - Como você realizou a investigação?
Laura Restrepo -
Estive um ano na cidade petroleira de Barrancabermeja. Muitas informações no livro são verdadeiras, como os relatos sobre a famosa greve do arroz [que levantou os petroleiros contra os proprietários americanos da Tropical Oil Company]. Li muito do que se noticiou à época, falei com muitas prostitutas e com muitos petroleiros. A foto da mulher que inspirou Sayonara existe e a tenho ainda comigo.

Folha - Como é essa foto?
Restrepo -
Trata-se de uma mulher muito bela, mas, sempre que a olhava de perto, distinguia algo de trágico em seu rosto. Entendi que, nesse meio social em que ela viveu, ser tão maravilhosa deve ter sido um imenso problema.
Era evidente que essa mulher tinha vivido muito e deixado muitas histórias, que recolhi como pude. Mas muitas coisas sobre ela eu não consegui descobrir. Por isso decidi que, no livro, ela não apareceria de uma outra forma que não fosse por meio dos relatos e das lembranças das pessoas.

Folha - Todos los Santos existiu?
Restrepo -
Aquele era um mundo de homens e mulheres sozinhos. Entre eles se estabelecia uma relação que não tinha nada a ver com o matrimônio.
Uma das características daquele tipo de prostituição dos anos 50 era que não havia uma figura masculina que explorava as prostitutas. Havia sim matronas que ensinavam às mais jovens não só a profissão, mas também a virarem seres humanos. Todos los Santos é um compêndio de todas essas mulheres que conheci lá.

Folha - O livro é algo nostálgico e até romântico com relação ao tema da prostituição. Você recebeu algum tipo de represália por isso?
Restrepo -
Eu não queria fazer uma apologia nem mostrar que aquela era uma vida fácil, mas também queria fazer um livro livre de estigmas. E nisso Jorge Amado serviu-me como mestre. Sempre pensei que na literatura latino-americana não existem mulheres tão livres como as que criou. O que encontrei na região correspondia justamente ao clima que ele descreve em seus livros.
Tenho tido sim discussões com feministas, que não entendem como posso ter feito um livro que pode ser lido como uma celebração à prostituição. Mas elas colocam a discussão num plano que não me interessa, e sempre lhes digo que a dignidade não vem do ofício que alguém escolhe.

Folha - Como é esse mundo hoje?
Restrepo -
O mundo petroleiro existe, e Barrancabermeja está atualmente no centro da guerra. É o local onde o conflito está mais vivo e a guerrilha é muito atuante. Já não há mais a Tropical Oil Company, mas sim seus sobreviventes. E a conexão entre os dois cenários, o dos bairros das prostitutas e dos campos petroleiros, está ainda na lembrança de todos.


A NOIVA ESCURA. Autora: Laura Restrepo. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 45 (399 págs.).


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