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São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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LIVRO

Patrocínio Filho "romanceia" sua vida no cárcere

ANTONIO ARRUDA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Convém esclarecer, por consequência, se eu sou um doido ou um canalha -pois de uma forma ou de outra apresentou-me a lenda que se formou em torno do meu nome. Da simples enunciação dos fatos, é provável que surja uma figura menos curiosa e mais verídica."
O jornalista e diplomata brasileiro José do Patrocínio Filho (1885-1929), autor da frase, talvez não tenha atingido o objetivo pretendido na afirmação: ele, como personagem do relato autobiográfico "A Sinistra Aventura - Reminiscências das Prisões Inglesas", não só surge como uma figura extremamente curiosa, mas como personagem cuja veracidade parece abalável quando o leitor passa a conhecer o inusitado e tortuoso enredo da história.
Publicado pela primeira vez em 1927 por Benjamin Costallat & Miccolis e com capa de Di Cavalcanti (primo de Patrocínio Filho), o relato dos anos de cárcere de Patrocínio Filho (que também escreveu "O Homem que Passa", de 1927, e "Mundo, Diabo, Carne", de 1923) teve seus 3.000 exemplares esgotados em três meses.
No ano de 1917, exatamente no dia em que se comemora a Independência do Brasil, Patrocínio Filho estava diante do chefe do serviço interior de contra-espionagem da Inglaterra.
"Exausto, imundo e lamentável", como conta, estava prestes a ter de dar explicações sobre suas ligações com o serviço de espionagem da Alemanha. Como provas para a acusação, a New Scotland Yard tinha um suspeito passaporte esquecido por Patrocínio Filho em uma gaveta e uma carta escrita durante a viagem que fazia da Holanda para a Inglaterra, de onde tentaria justamente retornar ao Brasil.
Mas o retorno deu-se somente com o fim da Primeira Guerra Mundial. Daquele Dia da Independência do Brasil até o final de 1918, Patrocínio Filho ficou detido em presídios britânicos, condenado por suspeita de espionagem. E, por mais que o cenário da sua sinistra aventura seja propício a uma narrativa calcada em uma realidade crua e cortante, a principal característica do narrador é tecer, mais do que os seus próprios sofrimentos, as histórias de outros presos que ele colheu nesse período.
Assim, entre momentos nos quais evidencia, em tom muitas vezes apelativo, um desespero atroz -como quando diz: "Senti que ia gritar, debater-me, caindo entres os bancos, mordendo o assoalho"-, Patrocínio Filho conta pequenas historietas, tão instigadoras quando a sua.
Como a do russo Tchicharine, nomeado (apesar de detido em uma prisão inglesa) embaixador dos sovietes junto à "Graciosa Majestade Britânica", como diz o autor. Ou a do corcunda Kerahn, líder sindicalista inglês, fotógrafo preso por atuar como "agente perturbador assalariado pelo kaiser". Destacam-se, ainda, a história de d. Carlos Kun de la Escosura, espanhol preso por prestar serviços como propagandista no governo do kaiser, e a do indiano Sagar-Shand, príncipe ao qual Patrocínio Filho denominou "amorável" e de coração como o de "outro príncipe sobrenatural", Buda.

Paixão
Mas a história de maior destaque na narrativa (e a contada com maior poeticidade) é justamente aquela que sedimenta, não por acaso, a atmosfera "romanceada" do livro: o relacionamento amoroso que Patrocínio Filho teve com a bailarina e espiã Mata Hari, que surge no livro como lembrança do narrador após ele saber, por meio de seus companheiros de cela, que sua antiga paixão havia sido executada em 1917.
Apesar do rico material romanesco (a trama cheia de reviravoltas, a vida de personagens marcados por situações kafkianas), a narrativa de Patrocínio Filho derrapa justamente quando tenta adquirir ares de romance literariamente bem estruturado.
E, ainda que na introdução do livro o autor diga que "há no gênero obras muito melhores", como "The Ballad of Reading Gaol", de Oscar Wilde, mesmo assim parece que ele tentou imprimir uma atmosfera aos moldes de um Dostoiévski (outro autor citado por Patrocínio) à sua narrativa -intenção que acabou por fragilizar o que sua obra tem de melhor: uma narrativa simples, que beira a crônica, realizada por um jornalista observador e sensível.

A Sinistra Aventura - Reminiscências das Prisões Inglesas


   
Autor: José do Patrocínio Filho
Editora: Labortexto Editorial
Quanto: R$ 24 (164 págs.)



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