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Gullar lembra Oiticica e Clark e ataca arte contemPorânea
Em entrevista
à Folha, poeta
e crítico maranhense
de 77 anos relaciona a
arte dos dias
de hoje a uma "pretensão descabida"
e destaca sua influência
sobre os nomes centrais do neoconcretismo
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Leia a seguir trechos da entrevista com Ferreira Gullar, na
qual reforça a importância de
seus livros-poema e relembra a
cisão que envolveu concretistas
em São Paulo com os neoconcretistas no Rio.
(MARIO GIOIA)
FOLHA - O que te motivou a fazer
esse livro?
FERREIRA GULLAR - Eu não costumo planejar as coisas, vêm
inesperadamente. Depois que
eu adoto a idéia, eu sou sistemático, e aí é outra coisa, mas
eu nunca planejei fazer esse livro. Surgiu do fato de que, escrevendo eventualmente colaborações daqui e dali, enfim,
voltam as questões da arte concreta e neoconcreta. As pessoas
me perguntavam coisas, e coisas que eu lia e não correspondiam à realidade. Eu que fui o
autor do manifesto, o autor da
teoria do não-objeto, modéstia
à parte, tive uma participação
decisiva na criação desse movimento, mas chegou um momento em que eu me afastei.
Então, ele seguiu em frente, e
aí tomaram conta dele [risos].
Grande parte do que fiz não publiquei, como os livros-poema.
Idéias que ficaram no manifesto foram sendo postas de lado e
se criou uma teoria e uma interpretação do movimento que
eu acho que não corresponde
exatamente à verdade. Então,
eu digo: é necessário botar as
coisas nos seus devidos lugares,
até para as pessoas compreenderem que é um movimento
importante da arte brasileira.
Há a contribuição da Lygia
[Clark], do Hélio [Oiticica], do
Amilcar [de Castro], do Weissmann, enfim, do grupo todo, e é
muito importante.
FOLHA - Você mostra a cisão entre
os grupos paulista e carioca na poesia e nas artes entre os concretos e
os neoconcretos?
GULLAR - São coisas diferentes.
A arte concreta e a poesia concreta são, de fato, preponderantemente paulistas. Houve
contribuição do grupo do Rio
no começo e, sobretudo, quando se refere à poesia, a gente começou mais ou menos junto e
tal, mas depois houve a ruptura
em condição de discordâncias
teóricas, que eram, na verdade,
expressão de uma tendência
que preponderava mesmo no
grupo de São Paulo. Já preponderava entre os pintores com o
Waldemar Cordeiro.
A gente aqui no Rio achava
ele racional demais, muito excludente das outras complexidades. Depois, com os poetas,
quer dizer, com a tese de uma
poesia que era feita segundo
um plano piloto, coisas com as
quais nós não concordávamos.
Era muito mais teoria do que
prática. A poesia será feita segundo fórmulas matemáticas...
Aí não é possível fazer. Eu considero charlatanismo dizer
uma coisa que não pode ser feita. O movimento neoconcreto
não nasceu como uma resposta
ao concretismo de São Paulo.
Essa cultura nasceu em meados de 57, o movimento neoconcreto só nasce em 59, quase
dois anos depois.
FOLHA - Você considera que o primeiro marco da sua obra é "Luta
Corporal", em 1954? E, na época,
qual era a sua relação com poetas de
gerações anteriores, como João Cabral, Drummond, Murilo Mendes,
Manuel Bandeira?
GULLAR - Quando eu comecei a
fazer poesia em São Luís do
Maranhão, tinha 17, 18 anos,
nem conhecia esses poetas.
Não conhecia ninguém. Eu costumo dizer que São Luís era
Macondo, lá ainda se fazia poesia parnasiana. Quando eu tomei conhecimento da poesia
moderna, foi uma coisa estranha, surpreendente. Em seguida, eu procurei ler sobre aquilo,
entender, aderir a essa visão
nova e de maneira mais radical
do que os próprios poetas da
época. E daí "Luta Corporal"
ter se tornado mesmo tão exclusivo, que terminou com a
desintegração da linguagem,
porque não aceitaria qualquer
princípio a priori para fazer
poesia. Qualquer norma agora,
nada eu aceitaria. Esse fato me
levou a desintegrar tudo.
Quando eu descobri esses
poetas, quer dizer, Drummond,
Murilo Mendes, eles contribuíram para me revelar, evidentemente, uma outra visão do que
era a poesia. Uma poesia mais
ligada ao mundo cotidiano, às
constâncias atuais, à realidade
material do mundo. Lia todos
os dias esses poetas, Bandeira,
Murilo, Drummond, lia, relia.
Depois, comecei a descobrir os
outros poetas do mundo, Rilke,
foi uma revelação quando eu
conheci a poesia dele, aí depois
Rimbaud, Mallarmé.
FOLHA - Você defende a idéia de
que a poesia neoconcreta tem uma
nova sintaxe, mas não um novo verso...
GULLAR - Veja bem, o Augusto
de Campos e o Haroldo de
Campos tinham publicado um
artigo em que eles diziam que
se tratava de buscar um novo
verso para a poesia. Aí eu falei
para eles: não se trata de um
novo verso, se trata de uma nova sintaxe, porque o verso já
era. A sintaxe foi desintegrada,
tem de ser buscada uma nova
sintaxe. O que o grupo de São
Paulo fez? Eles criaram, de fato,
uma nova sintaxe, que foi a
idéia do poema visual, o poema
cuja construção não é a sintática, a sintaxe vocabular, a sintaxe da língua, mas o que eles dizem: as relações de proximidade e semelhança entre as palavras. Então, é uma outra forma
de construir o poema. Isso é
uma coisa nova, eles que fizeram.
FOLHA - Por que sua poesia partiu
para o tridimensional? Seus poemas
estão em exposições de artes...
GULLAR - Pois é, comecei a fazer
o livro-poema. Como eu posso
construir um poema que obrigue o leitor a ler palavra por palavra e que no final resulte em
uma estrutura visual? Procurei
criar um livro que obrigasse o
leitor a ler palavra por palavra.
Esse fato foi decisivo no neoconcreto. O que distingue a
poesia concreta? A participação do espectador na obra de
arte. E nasceu do livro-poema,
mas eu não inventei nada.
FOLHA - No livro, você diz que seu
poema "Fruta" influenciou a série
dos "Bichos", da Lygia Clark?
GULLAR - O "Fruta" já é um objeto, ele não é mais um livro. A
maneira como ele abre é como
se você estivesse assim abrindo
uma flor, você tira uma pétala,
abre outra pétala, abre outra e
aí no fundo está a palavra "fruta" [Gullar pega um "Bicho" e
mostra as semelhanças do movimento da escultura]. A Lygia
estava desintegrando a pintura
e tirando do plano o elemento
tridimensional. Estava fazendo
os "Casulos", que inchavam a
tela, que criavam uma terceira
dimensão. Ela partiu para criar
uma coisa no espaço, que não é
uma escultura, na verdade, é
uma coisa que nasce da pintura.
FOLHA - E você diz que seu "Poema
Enterrado" influenciou projetos de
Hélio Oiticica.
GULLAR - Sim. Depois que eu fiz
"Fruta", que já era um objeto,
eu pensei: bom, vou fazer objeto a partir de agora. Não vou fazer mais nem livros nem coisas
parecidas com livros. Depois,
vamos fazer algo com a participação corporal. Agora, não é só
a mão que vai participar, agora
é o corpo inteiro. E como será?
Eu tenho de entrar no poema.
Eu imaginei entrar no poema e
aí bolei o "Poema Enterrado",
que é uma sala no fundo do
chão, em que o cara desce por
uma escada, abre a porta e entra no poema e lá tem os cubos.
Tem lá um cubo vermelho, você levanta, depois tem um cubo
verde, você levanta e depois
tem um cubo menor que você
pega do chão e lê a palavra: "rejuvenesça".
Então, eu publiquei o projeto
desse "Poema Enterrado" no
Suplemento Literário do "Jornal do Brasil". Aí o Hélio Oiticica leu e me ligou. Falou: "Cara,
achei genial, vamos construir.
Meu pai está construindo uma
casa nova aqui na Gávea Pequena e eu vou dizer a ele para
a gente construir o "Poema Enterrado" no quintal". O pai depois se rendeu e construiu o
"Poema Enterrado". Quando
nós fomos ver, no dia da inauguração do poema, tinha chovido na véspera, o poema estava
inundado [risos].
O "Poema Enterrado", do final de 59, teve influência sobre
o trabalho do Hélio. Anos depois, os projetos "Cães de Caça", que o Hélio fez, são labirintos que a pessoa percorre, quer
dizer, tem essa participação
corporal, é uma coisa que foi
antecipada pelo "Poema Enterrado". Não estou querendo dizer que eu sou o genial criador
da arte neoconcreta. Nós éramos um grupo e havia uma permuta permanente de idéias.
FOLHA - Você fala no livro que
Lygia Clark e Hélio Oiticica enveredaram por um campo sensorial.
GULLAR - Essas experiências-limite foram desenvolvidas pela
arte neoconcreta e levadas às
últimas conseqüências. Quando a própria Lygia, depois dos
"Bichos", começa a fazer experiências com a fita de Moebius
no "Caminhando", começa a
cortar coisas e a experiência seria ficar cortando infinitamente aquelas formas. Ela própria
disse que isso não era mais arte.
Depois, ela própria transformou aquilo em terapia, os objetos relacionais. Quando o Hélio
faz, por exemplo, os "Parangolés", ele não está mais no terreno da experiência formal, de alguma coisa que eu construo. É
uma pessoa qualquer que bota
um pano nas costas, tem a ver
com uma porta-bandeira de
Carnaval.
FOLHA - Você está desencantado
com o atual estado da arte e da crítica?
GULLAR - Sim, claro. Porque
não tem sentido o cara fazer
um tipo de suposta arte que
não tem artesanato, não tem
técnica, não tem princípio, não
tem norma, não tem objetivo
nenhum. A gente sabe que não
pode ser ensinada para ninguém. O que eles vão deixar para a outra geração? O quê? Como se vê mosca em microscópio? É uma pretensão descabida. Até Bach teve que aprender
música para poder compor.
É publicada uma série de bobagens, e a crítica participa disso. Fica aí escrevendo coisas
que não tem pé nem cabeça. O
que você vai escrever? O cara
bota larva de mosca... O que a
crítica vai dizer? Essas larvas
são boas, são belas larvas? Então, não há crítica para isso. Então, o crítico está sendo expulso e não percebe. Então ele fica
escrevendo bobagens, sociologias, especulações filosóficas
em torno da larva da mosca.
Ah, o que há?
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