São Paulo, sábado, 20 de outubro de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

Agonia dos minutos


"Ensaios Escolhidos" do gaúcho Augusto Meyer mostra crítica que se fazia à margem da especialização acadêmica

"AQUELA COUSA que ali está, atirada sobre a cama, entre cochichos tristes, é o corpo morto de Machado de Assis. Quatro horas da madrugada. Vem das árvores do Cosme Velho um cheiro de seiva. Os galos vão cantar."
O parágrafo parece do próprio Machado de Assis, ou de um Brás Cubas fazendo o obituário de seu criador -mas está na abertura de um dos textos de "Ensaios Escolhidos", livro de Augusto Meyer (1902-1970) organizado pelo poeta e historiador Alberto da Costa e Silva. O ensaio, cuja força estilística dá idéia do conjunto, é uma meditação sobre a arte e a morte. "Formulando a questão em termos paradoxais, extraordinário me parece o seguinte: o autor continuar a viver, apesar da sua obra, esse túmulo."
Aquilo que sobrevive, porém, não é a memória da figura empírica do escritor, mas as camadas de significação que resistem não só a sua desaparição física, como ao desgaste da própria obra "por força do inevitável embotamento e da velhice que banaliza as palavras". Ao falar de Machado, Meyer não faz nem o elogio do medalhão, nem uma ingênua defesa da literatura como puro artefato; tenta escutar a voz que ecoa do túmulo onde jazem os seres e seus livros: "No fundo de toda obra literária, por menos que pareça e embora se apresente sob o signo do desespero e da irremediável lucidez desencantada, há um protesto da vida contra a irreversibilidade, um desejo de ficar, de não mudar mais na agonia dos minutos".
Podemos discutir se seu retrato de Machado é mais verdadeiro do que a imagem do ironista escrevendo com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. O que sobressai, todavia, é a concepção de literatura advogada pelo crítico gaúcho, que em outro ensaio traz formulação ainda mais precisa: "Só ao nosso lamentável vício psicológico devemos a tendência para cultivar a biografia do homem, em detrimento da biografia do autor, que é a história da obra em sua projeção no tempo".
Este é um dos tantos ensinamentos da prosa algo casual de Augusto Meyer. Originalmente em livros como "À Sombra da Estante", "Preto e Branco" e "A Forma Secreta", os ensaios foram pinçados de modo criterioso, refletindo a incidência de certos nomes em sua produção. A forte presença de Machado ou de Garrett não empalidece, portanto, a variedade temática desse polígrafo que dirigiu o Instituto Nacional do Livro por 30 anos e representava um tipo de crítica que, a exemplo de Sérgio Milliet ou Otto Maria Carpeaux, atuava à margem da especialização acadêmica.
E isso sem prejuízo do rigor, como demonstram ensaios de grande erudição sobre Shakespeare e Dostoiévski, os antecedentes árabes da "aposta de Pascal", tópicas que remontam a Villon e Manrique (chegando até Manuel Bandeira) ou sobre os "Três Navios Negreiros" (os poemas irmãos de Béranger, Heine e Castro Alves).


ENSAIOS ESCOLHIDOS
Autor: Augusto Meyer
Organizador: Alberto da Costa Silva
Editora: Josér Olympio
Quanto: R$ 36 (288 págs.)
Avaliação: ótimo



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