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DISCO - LANÇAMENTOS
CD mostra capacidade do Schumann leitor de poesia
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
A primeira canção do ciclo
"Dichterliebe" de Schumann
(1810-1856) começa no meio e termina onde começou. Uma dissonância anuncia um acorde instável, que se repete em arpejos, e o
"maravilhoso mês de maio", que a
voz entoa poucos compassos depois, parece sair da música do piano com a ânsia de um desejo não
realizado.
A instabilidade viaja pela estabilidade para acabar na instabilidade. Acabar não é a palavra mais
certa: a canção termina, mas não
acaba, fica em aberto, para se completar nas ambivalências da seguinte.
Esse fragmento é exemplar da capacidade de Robert Schumann como leitor de poesia -especialmente a poesia de Heine- através
da música. Serve de emblema da
complexidade musical e afetiva
dessa arte lírica do romantismo,
que atinge em Schumann seu ponto máximo.
Canções como essas exigem cantores à altura. Cada nota, cada sílaba é um acontecimento no teatro
sintético da música. Tudo conta
nesse domínio da nuance, em que
grandes tormentos e visões de felicidade deixam-se entrever, apenas, em meio às ironias do verso e
às fugacidades da composição.
Dietrich Fischer-Dieskau e Peter
Schreier dividiam, até agora, os
louros de maior intérprete contemporâneo de Robert Schumann.
Não por falta de competição: só
neste ano foram lançadas três gravações do "Dichterliebe", com os
barítonos Stephan Genz (Claves),
Sebastian Bluth (Naxos) e, noutro
plano, Mathias Goerne, acompanhado por Vladimir Ashkenazy
(Decca).
Nenhum deles se compara ao tenor inglês Ian Bostridge, num novo disco (EMI) que o projeta ao
panteão dos maiores cantores de
Lieder do nosso tempo.
Conhecido como o desconhecido que gravou o ciclo "Die Schone
Müllerin" para a mais importante
edição integral das canções de
Schubert (Hyperion, 1996), Bostridge transformou-se, desde então, num dos mais comentados
cantores jovens do "alto" repertório: Monteverdi, Mozart, Britten,
além dos românticos.
Com este CD, torna-se uma escolha inevitável, referendada unanimemente pela crítica, não só na Inglaterra, onde também é sucesso
de televisão, mas na Alemanha,
nos Estados Unidos e até na França, onde talentos ingleses nem
sempre são assim tão bem acolhidos.
Ninguém canta Robert Schumann com tamanha empatia e inteligência. Seu estilo de sofreguidão calma, ou delírio frio, parece
ideal para a loucura amorosa de
Schumann; e se beneficia, nesse
disco, das artes análogas do pianista Julius Drake.
A relação entre voz e piano, aliás,
é uma característica original e da
própria essência dos Lieder. Não
há quem não note as passagens
longas de música para o piano solo, ao final de várias canções. As
perguntas implícitas, "quem canta
aqui?", "o quê?", expõem o compositor como agente da narrativa.
²
Ambiguidades
Uma gravação como a de Bostridge e Drake serve para realçar
outro fator idiossincrático, que é a
quebra da independência vocal:
nem a parte da voz é inteiramente
inteligível sem o piano, nem a melodia se deixa conter pelo instrumento. As ambiguidades contribuem para a leitura do poema.
Um exemplo é o final da primeira estrofe, na quarta canção do
"Liederkreis, op. 24". O tenor pede
que a amada ponha a mão sobre
seu coração, para sentir ali as batidas de um carpinteiro, construindo um esquife. "Construindo
um..." -e a voz se interrompe, o
piano gagueja dois golpes, até que
o cantor completa enfim a frase:
"Totensarg" (esquife).
Menos passível de descrição é o
timbre de melancolia do tenor,
disparado pelo "T" duro e já soçobrado na tristeza do "O", passando
em vertigem pelas sílabas até um
último "G", quase inaudível.
"Quase inaudível", aliás, é um registro que Bostridge habita com
especial cuidado. Um microdrama
de sílabas e pausas irracionaliza
em canto os sentidos de Heine.
Quem pode saber o que diz uma letra "M" sozinha (no início do
"Dichterliebe")?
Mas quem não percebe que é justamente em detalhes assim que
Bostridge está mais dentro da música? E não é o próprio Schumann
quem explora esses detalhes, numa concentração que chega à borda da loucura?
Outro exemplo é a terceira canção do "Liederkreis". As primeiras
duas estrofes descrevem a surpresa de "velhos sonhos", que reaparecem para o amante abatido, caminhando sob as árvores e escutando o canto dos pássaros. Bostridge e Drake interpretam essas linhas num tempo lento, intensificado, expandido como a dor expande o amor.
Mas o verdadeiro espanto vem
na terceira estrofe, a alucinação do
canto dos pássaros. Bostridge inventa para isso outro registro vocal
"inaudível", que é a própria imagem da irrealidade e arranca a música do mundo ao seu redor.
²
Obsessão
Entre tantas riquezas do disco,
vale ressaltar quatro canções compostas para o Dichterliebe e depois
cortadas por pressão do editor. Pelo menos uma é uma obra-prima:
"Mei Wagen Rollet Langsam", um
estudo sobre a obsessão amorosa e
rítmica, e uma imagem definitiva
do amor que passou, condenado
pelas Parcas.
Desde a adolescência, Schumann
sentia-se atormentado pelo fantasma da perda da razão. Seu amor
censurado por Clara resultou,
quem sabe, em angústias cujo efeito só foi explodir muito mais tarde,
em dois últimos anos vividos num
manicômio. Resultou também nas
canções desses ciclos, em que a lógica tradicional da música é suspensa por pressão do afeto.
Limites humanos e musicais são
transpostos na arte de Schumann,
de modo tal que inaugura um novo
desconforto da música: um mal-estar da composição, ainda imperante entre nós. Desse amor e dessa loucura, Ian Bostridge é um intérprete ideal.
Seu disco passa a ser, desde já,
uma referência para o nosso Schumann, e para o nosso mal-estar do
fim do milênio.
²
Disco: Schumann -Liederkreis, Op. 24,
Dichterliebe, Op. 48 & 7 Lieder
Com: Ian Bostridge (tenor) e Julius Drake
(piano)
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 22, em média
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