São Paulo, terça, 20 de outubro de 1998

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DISCO - LANÇAMENTOS
CD mostra capacidade do Schumann leitor de poesia

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

A primeira canção do ciclo "Dichterliebe" de Schumann (1810-1856) começa no meio e termina onde começou. Uma dissonância anuncia um acorde instável, que se repete em arpejos, e o "maravilhoso mês de maio", que a voz entoa poucos compassos depois, parece sair da música do piano com a ânsia de um desejo não realizado.
A instabilidade viaja pela estabilidade para acabar na instabilidade. Acabar não é a palavra mais certa: a canção termina, mas não acaba, fica em aberto, para se completar nas ambivalências da seguinte.
Esse fragmento é exemplar da capacidade de Robert Schumann como leitor de poesia -especialmente a poesia de Heine- através da música. Serve de emblema da complexidade musical e afetiva dessa arte lírica do romantismo, que atinge em Schumann seu ponto máximo.
Canções como essas exigem cantores à altura. Cada nota, cada sílaba é um acontecimento no teatro sintético da música. Tudo conta nesse domínio da nuance, em que grandes tormentos e visões de felicidade deixam-se entrever, apenas, em meio às ironias do verso e às fugacidades da composição.
Dietrich Fischer-Dieskau e Peter Schreier dividiam, até agora, os louros de maior intérprete contemporâneo de Robert Schumann. Não por falta de competição: só neste ano foram lançadas três gravações do "Dichterliebe", com os barítonos Stephan Genz (Claves), Sebastian Bluth (Naxos) e, noutro plano, Mathias Goerne, acompanhado por Vladimir Ashkenazy (Decca).
Nenhum deles se compara ao tenor inglês Ian Bostridge, num novo disco (EMI) que o projeta ao panteão dos maiores cantores de Lieder do nosso tempo.
Conhecido como o desconhecido que gravou o ciclo "Die Schone Müllerin" para a mais importante edição integral das canções de Schubert (Hyperion, 1996), Bostridge transformou-se, desde então, num dos mais comentados cantores jovens do "alto" repertório: Monteverdi, Mozart, Britten, além dos românticos.
Com este CD, torna-se uma escolha inevitável, referendada unanimemente pela crítica, não só na Inglaterra, onde também é sucesso de televisão, mas na Alemanha, nos Estados Unidos e até na França, onde talentos ingleses nem sempre são assim tão bem acolhidos.
Ninguém canta Robert Schumann com tamanha empatia e inteligência. Seu estilo de sofreguidão calma, ou delírio frio, parece ideal para a loucura amorosa de Schumann; e se beneficia, nesse disco, das artes análogas do pianista Julius Drake.
A relação entre voz e piano, aliás, é uma característica original e da própria essência dos Lieder. Não há quem não note as passagens longas de música para o piano solo, ao final de várias canções. As perguntas implícitas, "quem canta aqui?", "o quê?", expõem o compositor como agente da narrativa.
² Ambiguidades
Uma gravação como a de Bostridge e Drake serve para realçar outro fator idiossincrático, que é a quebra da independência vocal: nem a parte da voz é inteiramente inteligível sem o piano, nem a melodia se deixa conter pelo instrumento. As ambiguidades contribuem para a leitura do poema.
Um exemplo é o final da primeira estrofe, na quarta canção do "Liederkreis, op. 24". O tenor pede que a amada ponha a mão sobre seu coração, para sentir ali as batidas de um carpinteiro, construindo um esquife. "Construindo um..." -e a voz se interrompe, o piano gagueja dois golpes, até que o cantor completa enfim a frase: "Totensarg" (esquife).
Menos passível de descrição é o timbre de melancolia do tenor, disparado pelo "T" duro e já soçobrado na tristeza do "O", passando em vertigem pelas sílabas até um último "G", quase inaudível.
"Quase inaudível", aliás, é um registro que Bostridge habita com especial cuidado. Um microdrama de sílabas e pausas irracionaliza em canto os sentidos de Heine. Quem pode saber o que diz uma letra "M" sozinha (no início do "Dichterliebe")?
Mas quem não percebe que é justamente em detalhes assim que Bostridge está mais dentro da música? E não é o próprio Schumann quem explora esses detalhes, numa concentração que chega à borda da loucura?
Outro exemplo é a terceira canção do "Liederkreis". As primeiras duas estrofes descrevem a surpresa de "velhos sonhos", que reaparecem para o amante abatido, caminhando sob as árvores e escutando o canto dos pássaros. Bostridge e Drake interpretam essas linhas num tempo lento, intensificado, expandido como a dor expande o amor.
Mas o verdadeiro espanto vem na terceira estrofe, a alucinação do canto dos pássaros. Bostridge inventa para isso outro registro vocal "inaudível", que é a própria imagem da irrealidade e arranca a música do mundo ao seu redor.
² Obsessão
Entre tantas riquezas do disco, vale ressaltar quatro canções compostas para o Dichterliebe e depois cortadas por pressão do editor. Pelo menos uma é uma obra-prima: "Mei Wagen Rollet Langsam", um estudo sobre a obsessão amorosa e rítmica, e uma imagem definitiva do amor que passou, condenado pelas Parcas.
Desde a adolescência, Schumann sentia-se atormentado pelo fantasma da perda da razão. Seu amor censurado por Clara resultou, quem sabe, em angústias cujo efeito só foi explodir muito mais tarde, em dois últimos anos vividos num manicômio. Resultou também nas canções desses ciclos, em que a lógica tradicional da música é suspensa por pressão do afeto.
Limites humanos e musicais são transpostos na arte de Schumann, de modo tal que inaugura um novo desconforto da música: um mal-estar da composição, ainda imperante entre nós. Desse amor e dessa loucura, Ian Bostridge é um intérprete ideal.
Seu disco passa a ser, desde já, uma referência para o nosso Schumann, e para o nosso mal-estar do fim do milênio.
²
Disco: Schumann -Liederkreis, Op. 24, Dichterliebe, Op. 48 & 7 Lieder Com: Ian Bostridge (tenor) e Julius Drake (piano) Lançamento: EMI Quanto: R$ 22, em média


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