São Paulo, terça-feira, 20 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A partir de hoje no Rio, "Para Nunca Esquecer" lembra a presença negra na formação da identidade brasileira

Consciência em PRETO-E-BRANCO

Reprodução do catálogo "Negro de Corpo e Alma", da Mostra do Redescobrimento
'Castigo dos Escravos', de Jacques Arago


CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Hoje é, oficialmente, Dia da Consciência Negra. E, pela primeira vez, oficialmente também, dia da inconsciência brasileira. A afirmação é de Emanoel Araújo, organizador da mostra "Para Nunca Esquecer: Negras Memórias - Memórias de Negros", aberta hoje no Rio de Janeiro.
Diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, artista plástico e um dos principais agentes culturais do debate da questão do negro brasileiro, Araújo diz que é a primeira vez que o governo federal celebra a data que lembra o assassinato de Zumbi dos Palmares, líder do século 17 da resistência negra contra a escravidão.
E por que a mostra celebraria o "dia da inconsciência brasileira", no dizer do curador? "Pela falta de consciência que o brasileiro ainda tem sobre o papel do negro na construção da identidade nacional", responde.
Visando discutir essa "desmemória", "Para Nunca Esquecer" reúne, no Museu Histórico Nacional, no centro do Rio, mais de 500 obras. São pinturas, esculturas, gravuras, litografias, objetos, jóias e fotografias, feitas por artistas que correm o arco que vai de Aleijadinho (1738-1814) ao fotógrafo André Cypriano, 37.
Não se trata de uma antologia da produção artística dos negros brasileiros nem de uma coletânea de arte com temática afro-brasileira. "Para Nunca Esquecer" é uma mescla. Traz desde trabalhos de artistas negros com estética "européia", como uma natureza-morta de Estevão Silva (1844-1891) pintada no emblemático 1888 (ano da abolição oficial da escravidão), até uma série de fotografias sobre o universo afro-brasileiro feitas pela européia, radicada no Brasil, Maureen Bisilliat.
O entrelaçamento não é casual. "A exposição não questiona a pele do artista. É uma celebração do caráter sincrético do brasileiro", diz Araújo. "Não queremos dizer que somos africanos. Brancos, negros e mestiços, somos brasileiros. Este é um país mestiço."
Para suscitar a compreensão dessa brasilidade preto-e-branca, a mostra propõe uma visita à ancestralidade. Assim, o visitante é recepcionado por fotografias ampliadas de negros tocando tambor em um terreiro de candomblé.
Metaforicamente, o som desses tambores percorreria toda a exposição. Isso porque, como contraponto à exibição das manifestações culturais feitas por brasileiros ou europeus, brancos ou negros, que teriam ajudado a formar a consciência sincrética nacional, são expostos ícones ancestrais, objetos em maioria religiosos que estariam mais próximos da origem africana.
Desse modo, estão frente a frente, por exemplo, uma representação de um altar de candomblé e uma reprodução na parede de um extrato do texto da tese de doutoramento de Fernando Henrique Cardoso, no qual ele discute a capacidade de mistura de elementos racionais e místicos em um terreiro.
As paredes também trazem textos de poetas, como fragmentos de "Navio Negreiro", de Castro Alves, poemas do simbolista Cruz e Souza, do modernista Jorge de Lima e até de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que têm sua "Haiti" reproduzida na saída da mostra.
Complementando a letra da dupla de compositores baianos, está uma fotografia de André Cypriano que mostra um rapaz negro carregando nas costas um menino mestiço, tendo ao fundo a favela da Rocinha, no Rio.
"Essa foto resume a exposição", opina Diógenes Moura, que assessorou a montagem da mostra. "O pai negro segura nos ombros um filho mestiço, protegendo, portanto, sua ancestralidade, sua própria memória e a memória de seu povo", ressalta Moura.
Na exposição, a fotografia é a linguagem mais numerosa na recuperação dessa memória esquecida. São fotos como os registros do culto a Exu, de Mario Cravo Neto, imagens pioneiras do Brasil afro-brasileiro na lente do franco-baiano Pierre Verger ou mesmo as clássicas fotos de Pixinguinha feitas por Walter Firmo.
A fotografia também traz à mostra uma galeria bastante eclética de personalidades negras brasileiras. Um corredor reúne retratos irregulares, que vão desde grandes artistas, como Ruth de Souza e Grande Otelo, até políticos, caso do ex-governador do Rio Grande do Sul Alceu Collares. O próprio Emanoel Araújo, o curador, está incluído, em foto de 81 da grande Madalena Schwartz.
Também estão na mostra retratos de tinta e tela. Uma das pinturas centrais é "Batismo de um Homem Negro", de F.J. Stober, em que um padre joga água-benta sobre a cabeça de um rapaz negro.
"Somos produtos disso", diz Araújo, ressaltando o momento em que o branco passa a amamentar seus filhos no seio das amas-de-leite negras.
"Se o leite é a função da vida, o branco que bebeu o leite da negra não pode continuar branco. Como pode haver preconceito assim? Que inconsciência é essa?", pergunta o curador.
Araújo, que foi curador da mostra "Negro de Corpo e Alma", um dos módulos da exposição Mostra do Redescobrimento, sintetiza: "Isso tudo só posso chamar de o grande melê nacional".


PARA NUNCA ESQUECER: NEGRAS MEMÓRIAS - MEMÓRIAS DE NEGROS
(praça Marechal Âncora, s/nš, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/2550-9242). Quando: a partir de hoje, às 19h (convidados); de ter. a sex., das 10h às 17h30; sáb. e dom., das 14h às 18h. Até 28/2/2002. Quanto: R$ 5. Patrocinador: Ministério da Cultura.




Texto Anterior: Artes plásticas: Obras de Edgard de Souza desafiam espaço de Niemeyer
Próximo Texto: Frase
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.