São Paulo, quarta-feira, 20 de novembro de 2002

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ANÁLISE

Ouro Preto precisa discutir a preservação no âmbito coletivo

GUILHERME WISNIK
CRÍTICO DA FOLHA

A cidade de Ouro Preto está ameaçada de entrar na lista de "patrimônios em risco", ou até mesmo de vir a perder o título de patrimônio da humanidade, na classificação da Unesco.
Tal decisão dependerá da avaliação do Comitê do Patrimônio Mundial, que visitará o local até o início do ano que vem.
O que motivou essa alarmante situação foi o descontentamento da entidade em relação à gestão do crescimento urbano da cidade: a ocupação irregular das encostas da antiga "Vila" e o intenso tráfego de ônibus e caminhões no seu centro histórico.
Devemos compreender que essa ameaça não representa uma afronta, mas uma pressão da comunidade internacional para que os sítios de interesse sejam realmente preservados e que títulos como o de "patrimônio da humanidade" não significam prêmios vitalícios, mas exigem o cumprimento de certas normas.
Ouro Preto foi a primeira cidade brasileira a receber o título da Unesco, no ano de 1980, e concentra simbolicamente muito do que entendemos ainda hoje como legítima expressão da cultura nacional.
A cidade, no século 20, foi o ponto convergente das "viagens de descoberta" do Brasil empreendidas pelos modernistas de 22, acompanhando o poeta Blaise Cendrars.
Além disso, tal é a importância de seu acervo artístico e arquitetônico que estudiosos como Germain Bazin a consideraram, figurada na obra de Aleijadinho, como a última grande manifestação da arte religiosa no mundo.
Evidentemente, nos países ricos, cidades de importância e escala semelhantes não são tratadas com tanto descaso. Lá, o acesso de veículos às suas áreas centrais é sempre controlado, e o visitante é corretamente informado sobre as características históricas de cada edifício ou peça museológica.
Por outro lado, cedendo à colonização turística, tais cidades terminam por perder sua urbanidade, tornando-se museus a céu aberto, locais de entretenimento e consumo.
Ouro Preto, por sua vez, mantém elementos de uma cultura urbana ainda ativa, aparente, por exemplo, na sua agitação universitária ou na cultura musical dos seus festivais.
No entanto os combina a outras tantas características de museificação turística predatória, porém em estado precário. Banquinhas ambulantes de pedras preciosas, sons alardeados por alto-falantes e trânsito dão antes uma impressão de abandono, e não daquela eficiência artificial impactante das cidades européias. Ficamos, mais uma vez, num incômodo meio termo.
Há que se condenar, seguramente, uma certa cultura do desleixo, da qual a situação de Ouro Preto decorre. Mas a questão enraíza-se no dilema central da urbanização em países subdesenvolvidos: o dinheiro atrai serviços, e, portanto, uma população nova que vem a se estabelecer no local, via de regra de modo precário.
Dessa maneira, a abrangência do problema só poderá ser enfrentada se a questão da preservação for discutida, no país, como tema de interesse coletivo, o que não seria uma novidade, haja visto a acirrada discussão que envolveu a decisão sobre construir um hotel moderno ou neocolonial na cidade mineira, entre os anos de 1939 e 40.
Finalmente, a complexidade social e cultural da situação exige que se busquem soluções distintas das que foram empregadas, por exemplo, no caso do Pelourinho, em Salvador, onde a "revitalização" significou, cinicamente, segregação e maquiagem cenográfica.


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