São Paulo, sábado, 20 de novembro de 2004

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FERNANDO GABEIRA

A descoberta tardia do Haiti

O projeto era o de escrever apenas dois trabalhos sobre o Haiti. Mostrar as cores do país na revista "Simples" e formular um texto teórico para a "Política Externa", dirigida por Celso Lafer. Saio de Porto Príncipe com travo na garganta que só pode se exprimir na urgência de um jornal. É preciso estômago para passar incólume pelos escombros de Cité Soleil, onde moram mais de 500 mil pessoas, envoltas em pequenas nuvens de fumaça de lixo queimando.
Ou para percorrer uma grande feira livre banhada por esgoto cobrindo nosso sapato. Ou saber que algumas pessoas dormem enquanto outras caminham à espera de seu turno para ocupar o estreito espaço. Ou para ouvir que o sonho de muitos é o de comer pelo menos uma vez a cada dois dias.
A idéia geral, quando o Brasil decidiu mandar tropas, era a de pacificar o Haiti, garantir uma transição que seria concluída com a escolha de novos governantes e adicionar um novo país estável ao continente.
O Haiti, portanto, mobilizou nossa melhor qualidade: o desejo de ajudar os que precisam de nossa ajuda. Mas acionou, simultaneamente, nosso grande defeito: a ignorância sobre a trajetória histórica de outros povos.
O Haiti não é um país viável a curto prazo. Não há como desatar, rapidamente, seus três nós górdios. De um ponto de vista econômico, não há clima, por exemplo, para desenvolver a indústria do turismo, bem-sucedida do outro lado da ilha, na República Dominicana. Do ponto de vista político, com as facções se dilacerando, como esperar estabilidade de um pleito em que os eleitores não têm carteira de identidade? Ou como projetar a eficácia de um comitê eleitoral que tem sete meses de vida e até agora não fez nada, exceto tentar ganhar uma graninha extra superfaturando um conserto de ar-condicionado? Como replantar as árvores e combater a erosão que devorou as terras haitianas?
Num processo de duas décadas, com esforço articulado das forças internas e comunidade internacional, isso é possível. No momento, basta conviver com os soldados para sentir como é delicada a posição das forças da ONU. De um lado, sob pretexto de desarmar, os setores mais ricos querem que os militares reprimam os miseráveis concentrados em Cité Soleil, Bel Air e outros pontos da cidade; de outro, os pobres de Porto Príncipe encaram os Urutus com gestos na boca e barriga, indicando que têm fome. Como se dissessem: são bonitos esses tanques pintados de branco; pena não podermos servi-los no almoço.
Num manual para funcionários, em 1994, os americanos, com sua simplicidade, definiram o Haiti de uma forma ideal para iniciantes: problemas internos e externos, cuja complexidade não vale a pena discutir aqui, fizeram com que as coisas não dessem certo no Haiti nos últimos 200 anos.
Basta desembarcar à noite, em Porto Príncipe, para perceber isso. A cidade está às escuras, iluminada apenas por velas dos ambulantes que ocupam os passeios, dia e noite. O trânsito é caótico não só pela ausência de sinais luminosos mas também por um certo desprezo ao critério de mão e contramão. Nos momentos em que viajava com militares, muitas vezes foi preciso intervir, como se fossem guardas de trânsito, para nos livrarmos da paralisia.
As ruas de Porto Príncipe contam sua história. Os carros são consertados ali e através dessas oficinas ao ar livre. Você percebe que a frota sobrevive na base da criatividade. Quando o taxista que me serviu me deu seu cartão e se dispôs a me ajudar, de novo, em dezembro, pensei: isso se seu carro resistir mais duas semanas.
Uma jornalista chorou ao ver meninos na feira usando o esgoto para lavar o rosto. O grande impacto, no entanto, é Cité Soleil. Aqueles escombros empoeirados colocam vários enigmas: bombardeio, incêndio ou são apenas casas construídas pela metade, uma espécie de símbolo do Haiti, um país inacabado? É um limite de pobreza que nos convida a redefinir a condição humana.
A ONU mandou tropas para conter a violência. Na verdade, os grupos armados nas favelas de Porto Príncipe são menos numerosos que os da favela do Rio. O único problema é que alguns são mobilizados por forças políticas, em circunstâncias pontuais.
Todo o conceito de segurança no Haiti está baseado numa ênfase militar. É um equívoco. A ONU ainda não manda dinheiro para projetos sociais. A exceção no momento é o Canadá, com uma ajuda humanitária a Gonaives, onde morreram 3.000 pessoas. Os projetos dos órgãos multilaterais levam de 18 a 36 meses para chegar à prática.
Até lá vamos rodar muita favela de Urutu, de vez em quando levando algumas pedradas. Não só porque os Urutus representam o poder ausente (o governo transitório é zero) mas porque, pela sua missão, têm de dar apoio à polícia do Haiti, que é, com toda a razão, odiada pelo povo.
Os americanos estão no limite, voltados para o Iraque e para o Afeganistão. Os franceses tentando se equilibrar na Costa do Marfim, com grandes gastos de reintegração dos europeus que voltam empurrados pelo conflito.
O Haiti está fora da agenda mundial e, de certa maneira, foi adotado pelo Brasil. É um povo cheio de energia, elegante e com uma grande sensibilidade plástica. Basta olhar os cartazes, a pintura dos veículos coletivos, os top-top, para entender por que produziram grandes pintores.
Uma forma de sair do pântano é, gradualmente, reorientar nossa presença militar. Contar menos com conflitos armados e mais com a possibilidade de ajudar, abrindo uma pequena estrada aqui, montando um hospital de campanha ali. Compartilhar a dor haitiana, ao longo dos tufões e tiranos, sem grandes esperanças de resolver, de estalo, um fracasso de dois séculos.
Nosso trabalho terá menos visibilidade, não ganharemos pontos para entrar no Conselho de Segurança da ONU. É obsceno usar a miséria e o desespero de um povo como trampolim político internacional. Não se trata de voltar as costas, mas apenas abrir nossas mentes e corações para o Haiti.


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