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FERNANDO GABEIRA
A descoberta tardia do Haiti
O projeto era o de escrever
apenas dois trabalhos sobre
o Haiti. Mostrar as cores do país
na revista "Simples" e formular
um texto teórico para a "Política
Externa", dirigida por Celso Lafer. Saio de Porto Príncipe com
travo na garganta que só pode se
exprimir na urgência de um jornal. É preciso estômago para passar incólume pelos escombros de
Cité Soleil, onde moram mais de
500 mil pessoas, envoltas em pequenas nuvens de fumaça de lixo
queimando.
Ou para percorrer uma grande
feira livre banhada por esgoto cobrindo nosso sapato. Ou saber
que algumas pessoas dormem enquanto outras caminham à espera de seu turno para ocupar o estreito espaço. Ou para ouvir que o
sonho de muitos é o de comer pelo
menos uma vez a cada dois dias.
A idéia geral, quando o Brasil
decidiu mandar tropas, era a de
pacificar o Haiti, garantir uma
transição que seria concluída
com a escolha de novos governantes e adicionar um novo país estável ao continente.
O Haiti, portanto, mobilizou
nossa melhor qualidade: o desejo
de ajudar os que precisam de nossa ajuda. Mas acionou, simultaneamente, nosso grande defeito: a
ignorância sobre a trajetória histórica de outros povos.
O Haiti não é um país viável a
curto prazo. Não há como desatar, rapidamente, seus três nós
górdios. De um ponto de vista
econômico, não há clima, por
exemplo, para desenvolver a indústria do turismo, bem-sucedida
do outro lado da ilha, na República Dominicana. Do ponto de vista
político, com as facções se dilacerando, como esperar estabilidade
de um pleito em que os eleitores
não têm carteira de identidade?
Ou como projetar a eficácia de
um comitê eleitoral que tem sete
meses de vida e até agora não fez
nada, exceto tentar ganhar uma
graninha extra superfaturando
um conserto de ar-condicionado?
Como replantar as árvores e combater a erosão que devorou as terras haitianas?
Num processo de duas décadas,
com esforço articulado das forças
internas e comunidade internacional, isso é possível. No momento, basta conviver com os soldados para sentir como é delicada a
posição das forças da ONU. De
um lado, sob pretexto de desarmar, os setores mais ricos querem
que os militares reprimam os miseráveis concentrados em Cité Soleil, Bel Air e outros pontos da cidade; de outro, os pobres de Porto
Príncipe encaram os Urutus com
gestos na boca e barriga, indicando que têm fome. Como se dissessem: são bonitos esses tanques
pintados de branco; pena não podermos servi-los no almoço.
Num manual para funcionários, em 1994, os americanos, com
sua simplicidade, definiram o
Haiti de uma forma ideal para
iniciantes: problemas internos e
externos, cuja complexidade não
vale a pena discutir aqui, fizeram
com que as coisas não dessem certo no Haiti nos últimos 200 anos.
Basta desembarcar à noite, em
Porto Príncipe, para perceber isso.
A cidade está às escuras, iluminada apenas por velas dos ambulantes que ocupam os passeios,
dia e noite. O trânsito é caótico
não só pela ausência de sinais luminosos mas também por um certo desprezo ao critério de mão e
contramão. Nos momentos em
que viajava com militares, muitas
vezes foi preciso intervir, como se
fossem guardas de trânsito, para
nos livrarmos da paralisia.
As ruas de Porto Príncipe contam sua história. Os carros são
consertados ali e através dessas
oficinas ao ar livre. Você percebe
que a frota sobrevive na base da
criatividade. Quando o taxista
que me serviu me deu seu cartão e
se dispôs a me ajudar, de novo,
em dezembro, pensei: isso se seu
carro resistir mais duas semanas.
Uma jornalista chorou ao ver
meninos na feira usando o esgoto
para lavar o rosto. O grande impacto, no entanto, é Cité Soleil.
Aqueles escombros empoeirados
colocam vários enigmas: bombardeio, incêndio ou são apenas casas construídas pela metade, uma
espécie de símbolo do Haiti, um
país inacabado? É um limite de
pobreza que nos convida a redefinir a condição humana.
A ONU mandou tropas para
conter a violência. Na verdade, os
grupos armados nas favelas de
Porto Príncipe são menos numerosos que os da favela do Rio. O
único problema é que alguns são
mobilizados por forças políticas,
em circunstâncias pontuais.
Todo o conceito de segurança
no Haiti está baseado numa ênfase militar. É um equívoco. A ONU
ainda não manda dinheiro para
projetos sociais. A exceção no momento é o Canadá, com uma ajuda humanitária a Gonaives, onde
morreram 3.000 pessoas. Os projetos dos órgãos multilaterais levam de 18 a 36 meses para chegar
à prática.
Até lá vamos rodar muita favela de Urutu, de vez em quando levando algumas pedradas. Não só
porque os Urutus representam o
poder ausente (o governo transitório é zero) mas porque, pela sua
missão, têm de dar apoio à polícia
do Haiti, que é, com toda a razão,
odiada pelo povo.
Os americanos estão no limite,
voltados para o Iraque e para o
Afeganistão. Os franceses tentando se equilibrar na Costa do Marfim, com grandes gastos de reintegração dos europeus que voltam
empurrados pelo conflito.
O Haiti está fora da agenda
mundial e, de certa maneira, foi
adotado pelo Brasil. É um povo
cheio de energia, elegante e com
uma grande sensibilidade plástica. Basta olhar os cartazes, a pintura dos veículos coletivos, os top-top, para entender por que produziram grandes pintores.
Uma forma de sair do pântano
é, gradualmente, reorientar nossa
presença militar. Contar menos
com conflitos armados e mais
com a possibilidade de ajudar,
abrindo uma pequena estrada
aqui, montando um hospital de
campanha ali. Compartilhar a
dor haitiana, ao longo dos tufões
e tiranos, sem grandes esperanças
de resolver, de estalo, um fracasso
de dois séculos.
Nosso trabalho terá menos visibilidade, não ganharemos pontos
para entrar no Conselho de Segurança da ONU. É obsceno usar a
miséria e o desespero de um povo
como trampolim político internacional. Não se trata de voltar as
costas, mas apenas abrir nossas
mentes e corações para o Haiti.
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