São Paulo, sexta, 20 de novembro de 1998

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"Road movie' à brasileira

Vídeo documenta viagens do Cine Mambembe pelo interior do país


JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Nos últimos dois anos, em duas grandes viagens, os cineastas paulistas Laís Bodanzky, 29, e Luís Bolognesi, 32, percorreram mais de 15 mil quilômetros do interior do Norte e do Nordeste projetando filmes para platéias que nunca tinham ido ao cinema.
Numa caminhonete, eles levavam projetor, tela, oito curtas-metragens e um gerador, pois algumas das localidades visitadas nem tinham energia elétrica. Na primeira viagem, em 97, eles foram com a cara e a coragem. Na segunda, em 98, tiveram apoio do programa Universidade Solidária.
As projeções eram em escolas, antigos cinemas desativados, circos e praças. Foram ao todo 26 sessões em 22 locais, entre eles duas aldeias indígenas e um assentamento de sem-terra.
Enquanto levavam adiante seu cinema itinerante -que eles batizaram de Cine Mambembe-, Bodanzky e Bolognesi documentaram a experiência com uma câmera digital de vídeo.
Das 40 horas de fita gravadas, editaram um documentário de 55 minutos, "Cine Mambembe - O Cinema Descobre o Brasil", que acaba de ficar pronto e terá pré-estréia aberta ao público dia 30 no Espaço Unibanco de Cinema.
Laís Bodanzky e Luís Bolognesi -que são casados e vivem em São Paulo- pretendem vender o vídeo para uma emissora de TV e, quando tiverem recursos, vertê-lo para película cinematográfica de 35 milímetros, por meio do processo chamado kinescopia, para a exibição em cinemas.
"Cine Mambembe", o documentário, é um singular "filme de estrada", em que a odisséia dos dois cineastas-projecionistas serve de pretexto para dar voz aos indivíduos das localidades visitadas -seja nos debates suscitados pelos filmes, seja em depoimentos para a câmera.
O vídeo não se limita a documentar a ação do Cine Mambembe. Abre-se, pelo contrário, para a vida das regiões percorridas.
"Tudo o que nos tocava, nos feria ou encantava, nós íamos atrás", resume Luiz Bolognesi. "Por exemplo: quando estávamos em Piranhas (AL) e soubemos que o "seu' Chiquinho tinha trocado tiros com o bando de Lampião, fomos falar com ele."
Dessa abertura para a realidade circundante resulta a pulsante riqueza do vídeo. As histórias são inúmeras, e cada uma delas poderia ser tema de um documentário.
Em Lagoa dos Gatos (PE), uma especialista em preparar enterros de "anjinhos" (eufemismo para crianças mortas) mostra seu doloroso ofício.
Uma índia krikaty fala sobre seu isolamento social na cidade de Carolina (MA) e compara com a vida que levava na aldeia de seu povo.
Um homem que viveu em São Paulo como operário metalúrgico e voltou para o sertão contrasta as duas situações.
Outro conta como é seu trabalho no comando de um carro de som que transmite notícias e anúncios pelo interior. "Descobrimos que essa é uma figura característica do Nordeste. Substitui o jornal, no interior", diz Bolognesi.
² Debates sobre filmes
Os debates suscitados pelos filmes -entre índios, sertanejos, velhos, crianças, adolescentes- são quase sempre surpreendentes.
"Em cada lugar era um filme que causava mais impacto, e procuramos preservar isso no documentário", explica Laís Bodanzky.
As alunas de uma escola pública maranhense discutem acaloradamente a situação da mulher a partir do curta "Cartão Vermelho", da própria Laís. O filme mostra uma menina que, jogando futebol, mira sempre o saco dos meninos com suas boladas.
Numa aldeia kraó em Tocantins, um velho cacique diz ter gostado de ver os xavantes em briga com os brancos no filme "Extingue!", de Eduardo Caron. E lamenta: "Hoje está tudo diferente. Está tudo uma amizade".
Já num assentamento do Movimento Sem-Terra no sul do Pará, a discussão gira em torno de "Geraldo Voador", de Bruno Viana, sobre um menino favelado que acaba vítima da violência urbana. "Se o Geraldo vivesse aqui, a gente botava uma enxada e uma caneta na mão dele, e ele poderia ter um futuro", diz um militante, no único momento em que o vídeo quase resvala para o panfletarismo.
No sertão de Pernambuco, "Pedro e o Senhor", de Luiz Bolognesi, que retrata um falso milagreiro, enseja depoimentos sobre a religiosidade popular.
Além dos debates dos filmes, há uma investigação sobre o que aconteceu com os cinemas locais. Alguns estão praticamente intactos, décadas depois de exibirem sua última sessão.
Alguns dos depoimentos mais interessantes são os que iluminam o próprio cinema como fenômeno social e cultural.
A maioria dos espectadores do Cine Mambembe via filmes pela primeira vez. Mas uns poucos ainda lembravam com emoção das sessões lotadas a que assistiram no passado. "Havia gritos, palmas, assobios, como num jogo de futebol", diz um ex-bilheteiro.
O critério básico para a seleção das histórias e depoimentos foi, segundo Laís Bodanzky, "o brilho no olho do entrevistado". De fato, todos os personagens que falam diante da câmera transmitem uma sensação de veracidade e paixão.
A mesma paixão com que Luiz Bolognesi respondeu aos índios kraó que lhe perguntaram qual era o "interesse" por trás do Cine Mambembe.
Sua resposta: "Antigamente, quando não havia televisão, os brancos tinham o hábito de se reunir numa sala grande e assistir a um filme. Isso era o cinema. Assim como vocês querem preservar seus rituais e sua cultura, a gente não quer que o cinema morra".



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