São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIAS

"OS PALHAÇOS"

Produção foi realizada pelo cineasta em 1970 para a TV

Fellini acerta as contas com a sua paixão pelo circo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

É possível resumir "Os Palhaços" como o acerto de contas de Federico Fellini (1920-93) com sua paixão pelo circo e pelos palhaços em particular.
Já o início, aliás, não deixa dúvidas a esse respeito. Existe ali um menino e sua primeira experiência no circo. Experiência clandestina, já que deve escapar de casa para chegar perto do objeto de sua fascinação.
É o ponto alto do filme: longe de ser um circo real, o que Fellini nos dá a ver é uma fabulosa fantasia. Um circo sonhado, como se o menino não tivesse saído de seu quarto. Fellini sabia filmar sonhos como ninguém. Aqui filma o seu próprio sonho infantil.
Talvez o que vem a seguir seja um pouco mais árido -e talvez isso justifique o fato de este filme ter levado 32 anos para sair do ineditismo no Brasil-, pois trata-se de Fellini buscando os palhaços, entrevistando-os, examinando particularidades e estilos.
Alguns nos parecerão estranhos, como a figura do palhaço branco, mais rico que a média e, aparentemente, ligado à tradição francesa do circo.
Isso importa pouco. Com "Os Palhaços" estamos de certa forma no coração de Fellini e de seu cinema. Não é por acaso que ele faz uma aparição como documentarista, dando a entender que o fascínio, em vez de se extinguir com a idade, apenas se profissionalizou. Lá estão as máscaras, as maquiagens excessivas, as roupas extravagantes, que deformam os corpos. Lá está a matéria-prima de parte do cinema felliniano.
O palhaço é um homem disfarçado. Não muito diferente, por exemplo, do vigarista que se faz passar por padre para passar um conto do vigário em "A Trapaça" (1955), ou da dupla de bailarinos de "Ginger e Fred" (1985), que se fantasiam de Ginger Rogers e Fred Astaire -para falar de trabalhos distantes 30 anos um do outro; no meio haverá muitos outros exemplos.
O palhaço é ele mesmo e um outro. Como todos nós, talvez. Essa duplicidade talvez seja o motivo do fascínio que desperta em certas crianças e do horror que inspira a outras. Fellini parece ter carregado vida afora tanto o fascínio como o horror dessa fantasia infantil. Sobretudo a idéia de fantasia, muito presente em sua obra.
Existe outro aspecto ligado ao caráter infantil dessa fantasia: um certo apego felliniano ao passado, a modos de convivência mais suaves do que aqueles que a guerra e o pós-guerra revelaram. Os anos 50 foram marcados por vários filmes de circo, o que talvez revele a aspiração de manter viva uma arte que o tempo estava se encarregando de enterrar.
Ao longo de sua vida, Fellini criou um correlato do circo em imagens cinematográficas. Em 1970, neste trabalho para TV, fez uma espécie de exumação do circo, buscando os últimos grandes "clowns" e, neles, a imagem de um tempo que seu cinema procurou, talvez, eternizar.
Filme menor? Pode ser. Desigual, com certeza. Mas cada plano tem a pulsação de um cineasta invulgar. Ninguém desprezará.


Os Palhaços
I Clowns
    
Direção: Federico Fellini
Produção: França/Itália/ Alemanha, 1970
Com: Riccardo Billi, Fanfulla, Mayo Morin e Lima Alberti
Quando: a partir de hoje no Cineclube DirecTV 1



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