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São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2003

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LITERATURA/CRÍTICA

Em "A Estepe", escritor russo utiliza aspectos da paisagem para definir a alma de seus personagens

Sem malabarismos, Tchecov conduz prosa sutil

RODRIGO PETRONIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O século 20 foi pródigo em equívocos teóricos no que diz respeito à arte. Uma dessas distorções é relativa ao conceito de modernidade. De tanto se repisar à exaustão que a arte moderna consiste numa transgressão da linguagem, acabou-se por transformar esse lugar-comum em algo positivo e, logo, contraditório, porque é impossível preconceber uma transgressão sem invalidá-la em sua essência. Criou-se aquela famosa (e paradoxal) "tradição da ruptura" de que fala Octavio Paz, e perdeu-se o próprio espírito que move a modernidade e lhe confere sentido. Defini-la é engessá-la.
O mais grave dessa visão é o falseamento que ela gera. Falseamento do valor das obras e das perspectivas artísticas, que trocam sua base técnica por agregados ideológicos que lhe são extrínsecos. O resultado disso são problemas de aferição crítica e o enfraquecimento da discussão estética, onde as obras são legitimadas por conceitos próximos de campos alienígenas do que da especulação rigorosamente formal.
Lendo a novela "A Estepe - História de uma Viagem", de Anton Tchecov (1860-1904), nos deparamos com aspectos elementares de uma boa prosa de ficção que muitas vezes não encontramos mais por causa dessa hipertrofia de autores "modernos". Seu fio condutor é simples e sem grandes malabarismos temáticos ou estruturais; o desenvolvimento, linear, porém, sutil na captação de matizes descritivos e psíquicos. Mais do que boa literatura para leitores, é uma boa escola para escritores.
Trata-se de uma viagem realizada em uma caleça por um conjunto de personagens: o padre Cristofor, o cocheiro Denishka, o comerciante Ivan Kuzmitchov e seu sobrinho, foco central da história, Iegóruchka, conduzido a um distrito não identificado para cursar o ginásio. No centro das sucessivas situações que se desenrolam, é o amadurecimento do personagem principal e suas descobertas pessoais que, de certa maneira, protagonizam a ação.
A paisagem áspera das estepes, com seus salgueiros tristes e suas estalagens soturnas, se torna um correlato objetivo do que se passa na alma dos personagens, e estes, os habitantes de sua própria interioridade, desdobrada na estrada que os conduz a algum lugar onde vão buscar algo além da realidade insuficiente que os constitui.


A Estepe - História de uma Viagem
    
Autor: Anton Tchecov
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 26 (120 págs.)



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