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"A ARTE DO COMBATE"
Crítico e jornalista gaúcho analisa escritos produzidos por várias gerações de escritores do país
Backes traz à luz o genial da tradição alemã
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Há muitas tolices em "A Arte do Combate", mas o conjunto vale a pena. O crítico e jornalista Marcelo Backes fez uma
antologia de aforismos e epigramas da literatura alemã, começando de fábulas e provérbios escritos por Martinho Lutero (1483-1546) e terminando com os versos
de uma canção satírica de Wolf
Biermann. Backes acrescenta comentários informativos e destemperados sobre cada autor. O volume acaba constituindo uma pequena e curiosa história da literatura alemã, com um "longuíssimo
adendo", como diz Backes, sobre
os escritores contemporâneos, e
um estrepitoso posfácio em que o
antologista defende "a crítica que
mete o pau".
São três ou quatro trabalhos
num só, portanto. Aprende-se
bastante com a parte histórica.
Não é em todo lugar que se fica sabendo quem escreveu a primeira
versão de "Tristão e Isolda" (Gottfried von Strassburg) ou "Fausto"
(Johann Spies), e quais as principais figuras da literatura feminina
alemã na década de 1990 (Judith
Hermann, Karen Duve). Backes
tem todos esses nomes na ponta
da língua, e trata-os como se fosse
um caçula irreverente, na ponta
da mesa do almoço em família, falando de parentes e antepassados
nem sempre respeitáveis.
Referindo-se a determinada tese de Lutero sobre o poder religioso dos príncipes, Backes considera-a "pouco racional e ademais ridícula". No meio de um verbete
elogioso sobre Schopenhauer,
aparecem cutucões no romancista francês contemporâneo Michel
Houellebecq. O romance "Lucinde", de Friedrich von Schlegel
(1772-1829) é "pouco mais do que
a defesa conveniente do amor livre" e "o vômito mal talhado" da
paixão de Schlegel pela filha de
um banqueiro.
O poeta Heine (1797-1856) é
cumprimentado por certo "ripaço" que deu em Goethe. Será que
se tratava de um "ripaço" tão memorável assim? Heine tinha ido a
Weimar visitar o consagrado poeta e não teve muita acolhida. Voltou dizendo: "as ameixas no caminho de Jena a Weimar são assaz deliciosas".
Certos ditos de espírito perdem
a graça quando desaparece a situação que os originou; é também
comum que piadas sofram bastante com a tradução. Uma antologia de farpas e mordacidades
alemãs corre, assim, muitos riscos. Assim, o poeta barroco
Gryphius (1616-1664) não tem por
que ser lembrado ao dizer, contra
um rival, que "Bav se gaba / de
que o mundo inteiro lê suas linhas./ Bav pensa que/ o mundo
são duas cidades vizinhas". O texto parece importante ao antologista porque "no distante Rio
Grande do Sul de hoje, por exemplo, há um poeta mundial (no
sentido baviano do termo) em cada esquina".
Acertos de contas com inimigos
locais não faltam nos comentários
de Backes. Há em seu livro um
gauchismo profundo -um "tief-Gauschismus" que poderíamos
caracterizar como certa sensaboria provinciana e entusiástica, faminta de insulto, sempre exultante e desassombrada quando estiver diante do trivial.
Apesar disso, "A Arte do Combate" traz muitas amostras do que
há de genial na tradição alemã do
fragmento e da ironia. Aproximando no mesmo volume os irmãos Grimm e Kafka, as "xênias"
de Goethe e os ditos de Brecht, os
paradoxos de Karl Kraus, uma
sentença de Schnitzler e um aforismo de Nietzsche, o trabalho de
Backes cintila de relações inusitadas e pensamentos notáveis. Talvez não sejam, justamente, os
mais agressivos.
Eis um de Goethe: "muita gente
fica batendo o martelo a esmo pelas paredes e acredita que a cada
golpe acerta o prego em cheio".
Sempre se pode dizer que, conforme o número das marteladas, há
ótimas probabilidades de acerto.
A Arte do Combate
Autor: Marcelo Backes
Editora: Boitempo
Quanto: R$ 40 (368 págs.)
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