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São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2003

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"A ARTE DO COMBATE"

Crítico e jornalista gaúcho analisa escritos produzidos por várias gerações de escritores do país

Backes traz à luz o genial da tradição alemã

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Há muitas tolices em "A Arte do Combate", mas o conjunto vale a pena. O crítico e jornalista Marcelo Backes fez uma antologia de aforismos e epigramas da literatura alemã, começando de fábulas e provérbios escritos por Martinho Lutero (1483-1546) e terminando com os versos de uma canção satírica de Wolf Biermann. Backes acrescenta comentários informativos e destemperados sobre cada autor. O volume acaba constituindo uma pequena e curiosa história da literatura alemã, com um "longuíssimo adendo", como diz Backes, sobre os escritores contemporâneos, e um estrepitoso posfácio em que o antologista defende "a crítica que mete o pau".
São três ou quatro trabalhos num só, portanto. Aprende-se bastante com a parte histórica. Não é em todo lugar que se fica sabendo quem escreveu a primeira versão de "Tristão e Isolda" (Gottfried von Strassburg) ou "Fausto" (Johann Spies), e quais as principais figuras da literatura feminina alemã na década de 1990 (Judith Hermann, Karen Duve). Backes tem todos esses nomes na ponta da língua, e trata-os como se fosse um caçula irreverente, na ponta da mesa do almoço em família, falando de parentes e antepassados nem sempre respeitáveis.
Referindo-se a determinada tese de Lutero sobre o poder religioso dos príncipes, Backes considera-a "pouco racional e ademais ridícula". No meio de um verbete elogioso sobre Schopenhauer, aparecem cutucões no romancista francês contemporâneo Michel Houellebecq. O romance "Lucinde", de Friedrich von Schlegel (1772-1829) é "pouco mais do que a defesa conveniente do amor livre" e "o vômito mal talhado" da paixão de Schlegel pela filha de um banqueiro.
O poeta Heine (1797-1856) é cumprimentado por certo "ripaço" que deu em Goethe. Será que se tratava de um "ripaço" tão memorável assim? Heine tinha ido a Weimar visitar o consagrado poeta e não teve muita acolhida. Voltou dizendo: "as ameixas no caminho de Jena a Weimar são assaz deliciosas".
Certos ditos de espírito perdem a graça quando desaparece a situação que os originou; é também comum que piadas sofram bastante com a tradução. Uma antologia de farpas e mordacidades alemãs corre, assim, muitos riscos. Assim, o poeta barroco Gryphius (1616-1664) não tem por que ser lembrado ao dizer, contra um rival, que "Bav se gaba / de que o mundo inteiro lê suas linhas./ Bav pensa que/ o mundo são duas cidades vizinhas". O texto parece importante ao antologista porque "no distante Rio Grande do Sul de hoje, por exemplo, há um poeta mundial (no sentido baviano do termo) em cada esquina".
Acertos de contas com inimigos locais não faltam nos comentários de Backes. Há em seu livro um gauchismo profundo -um "tief-Gauschismus" que poderíamos caracterizar como certa sensaboria provinciana e entusiástica, faminta de insulto, sempre exultante e desassombrada quando estiver diante do trivial.
Apesar disso, "A Arte do Combate" traz muitas amostras do que há de genial na tradição alemã do fragmento e da ironia. Aproximando no mesmo volume os irmãos Grimm e Kafka, as "xênias" de Goethe e os ditos de Brecht, os paradoxos de Karl Kraus, uma sentença de Schnitzler e um aforismo de Nietzsche, o trabalho de Backes cintila de relações inusitadas e pensamentos notáveis. Talvez não sejam, justamente, os mais agressivos.
Eis um de Goethe: "muita gente fica batendo o martelo a esmo pelas paredes e acredita que a cada golpe acerta o prego em cheio". Sempre se pode dizer que, conforme o número das marteladas, há ótimas probabilidades de acerto.


A Arte do Combate
    
Autor: Marcelo Backes
Editora: Boitempo
Quanto: R$ 40 (368 págs.)



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