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MARCELO COELHO
Jamais será vencido
Mais cuidadosa em relação à economia, a esquerda não largou o discurso conspiratório
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SOBRE AUGUSTO Pinochet, tudo
o que havia a dizer já foi dito,
por ocasião de sua morte, na
semana passada. Não faltaram ditadores sanguinários na América Latina, mas nenhum era capaz de estampar tão claramente como Pinochet, na própria aparência física, o
terror e a truculência de seu regime.
Uma figura como Jorge Rafael Videla, na Argentina, foi responsável
por crimes igualmente hediondos;
seu rosto, entretanto, parecia estranhamente inofensivo, quase gentil.
Pinochet, não: os óculos escuros, as
feições de granito e o corpo compacto traduziam uma determinação para o extermínio que não era temperada, como acontece em tantos tiranos, pela alegria debochada ou perversa no exercício do poder.
Em vida, Pinochet já tinha algo de
cadavérico e tumular; era intencional, talvez, a sua semelhança com algum monstro de filme de terror. Só
posso desejar que não ressuscite.
Está disponível nas locadoras uma
caixa com quatro DVDs sobre a crise
do governo Allende e o golpe de Pinochet. "A Batalha do Chile" é uma
série de três documentários dirigidos por Patrício Guzmán entre 1975
e 1979; um DVD suplementar traz
médias-metragens sobre Guzmán e
sobre a resistência final de Allende.
O colapso da democracia chilena
surge, nesses filmes, como se fosse
narrado dia a dia; a câmera registra
os acontecimentos no calor da hora,
e o valor de documento histórico
dessa coleção é inquestionável.
Mais de 30 anos depois do golpe,
fica fácil fazer o papel de lúcido, de
equilibrado, e notar que o governo
de Allende estava totalmente à deriva muito antes de setembro de 1973.
Resistindo até o último minuto,
dentro do Palácio de La Moneda,
Allende passou para a história como
um mártir; mas a impressão que fica, para quem vê os documentários
hoje em dia, é a de que foi protagonista de um longo e enlouquecido
processo de suicídio político.
O primeiro filme, caracteristicamente intitulado "a insurreição da
burguesia", começa com as eleições
parlamentares de 1973. A oposição a
Allende esperava obter dois terços
das cadeiras no Legislativo, forçando a renúncia do presidente. Não
conseguiu tantos votos assim, mas
garantiu suficiente número de deputados para rejeitar, por maioria
simples, todo projeto do Executivo.
Foi além, abrindo investigações
sobre todos os ministros de Allende,
e demitindo, num aberto conflito de
poder, vários auxiliares diretos dele.
Fica óbvio que Allende já não tinha condições de governar. Espantosamente, para quem analisa em retrospecto, a esquerda resolveu insistir no confronto, como se a experiência brasileira de 1964 não tivesse
existido e como se o imperialismo
americano fosse um "tigre de papel".
É nesse ponto que o documentário revela todo o seu apego a uma
mitologia de esquerda que ainda
subsiste na América Latina. Verdade que subsiste apenas psicologicamente, sentimentalmente, e não
mais no plano da prática política.
De minha parte, cada vez que ouço
o velho refrão de que "o povo unido
jamais será vencido", levo a mão ao
passaporte. O DVD de "A Batalha do
Chile" deveria vir com um detector
de mentiras. Não porque a direita
não fosse golpista, mas porque o
grau de omissões e de partidarismo
se aproxima do indesculpável.
O filme repete à exaustão que a direita havia sido "derrotada" nas urnas: a esquerda alcançara o índice
sem precedentes de "mais de 40%
dos votos". Não se apresenta o dado
complementar, de que a oposição
conseguira quase 60%.
As primeiras cenas mostram uma
das primeiras iniciativas "golpistas"
da oposição: estocar víveres, provocando uma crise de desabastecimento no país.
O governo organizou brigadas, em Santiago, para ter acesso aos mantimentos estocados.
O que o filme não diz é que a inflação chilena, em 1973, alcançaria o
índice de 500%, segundo as estatísticas oficiais. Institutos privados,
naturalmente "a serviço dos reacionários", calculavam-na em 1000%.
É como se tivéssemos uma economia de fins do governo Sarney,
acompanhada de um ódio à esquerda perto do qual os sentimentos despertados por Lula são coisa de jardim de infância. Greves eram financiadas pela direita; mas, numa economia em frangalhos, conspiração e
golpe têm condições de êxito plenamente asseguradas.
Muito mais cuidadosa hoje, no
que diz respeito à economia, a esquerda não abandonou entretanto o
discurso conspiratório, atribuindo à
direita a total responsabilidade pelos erros que comete. "A Batalha do
Chile" é música de primeira para esse tipo de audiência.
coelhofsp@uol.com.br
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