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Notas sobre arte e artistas
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
O poeta que faz de nós poetas. Arte é o que toca o destinatário e o transforma em artista. Na profusão de definições
sobre a obra de arte, escolhi essa. Simples, palpável, quase
pragmática. Serve como padrão avaliador, mas também
como estímulo. Aplica-se a todas as manifestações artísticas
e matérias afins.
Se aquele verso, melodia,
imagem, emoção e experiência
conseguem despertar outros
versos, melodias, imagens,
emoções e experiências armazenados em nosso repertório, o
esforço estético ou intelectual
do autor deu resultado. Caso
contrário, frustrou-se.
Via de mão dupla, afinação
entre dois artistas -o que faz
e o que recebe-, a criação deve "bater" na sensibilidade
do receptor para convertê-lo
em participante ativo do processo. Se é capaz de responder
na mesma onda ou vibração,
deu-se o milagre, catarse.
A primeira vantagem do
axioma é a sua capacidade de
flexibilizar e universalizar a
percepção criadora. O conceito
de obra de arte passa a ser relativo ao efeito que produz
num indivíduo ou público. Arte deixa de ser matéria exclusiva dos iluminados com suas
elucubrações para se converter
em alimento espiritual ou
emocional de qualquer um apto a apreciá-la. Experiência
pessoal transferida, independentemente de cânones e varinhas de condão.
O gostar ou não gostar ganha
conotação funcional. Arte passa a ser a sintonia entre um
processo interior e sua capacidade de extravasar e mobilizar
o processo interior de outros.
Artista e receptor da arte se
convertem em interlocutores,
partes de um diálogo, sujeitos
ao imponderável das circunstâncias e ambientes. O que explica a transitoriedade dos critérios de apreciação e as montanhas de obras produzidas a
cada minuto.
Quando, aos 15 anos, li
"Jean Christophe", de Romain Rolland, achei-o definitivo -converteu-se em termo
de referência em matéria existencial e literária. Tudo o que
escrevi naquela época era puro
Rolland.
Quarenta anos depois, quando achei num baú os cinco tomos da editora Globo, não
consegui ultrapassar o primeiro capítulo do primeiro volume. "Jean Christophe" já não
fazia soar coisa alguma, senão
lembranças da primeira leitura. Mesmo que no intervalo tenha aumentado a admiração
pessoal pelo autor.
Já "Hamlet", que descobri
pouco antes pela mão de Laurence Olivier jamais perdeu a
entonação sublime, mesmo
nas "releituras" modernas.
Um dos primeiros discos de
música clássica que comprei,
mais ou menos à mesma época,
uma daquelas "bolachas" de
78 rotações, continha duas
aberturas de Beethoven. Uma
delas, a famosa "Leonora",
arrebatada, épica.
Achei na velha Casa Crashley, lá na rua do Ouvidor,
centro do Rio, especializada
em periódicos e livros ingleses,
uma partitura simplificada,
edição Penguin. Inesquecível
sensação: o velho Ludwig conseguiu transformar o rapazola
com rudimentos de solfejo em
músico.
Reencontrei, inteira, a mesma sensação há dias, em São
Paulo, ao ouvir pela primeira
vez a íntegra de "Fidélio", a
única ópera de Beethoven, da
qual aquela abertura faz parte. Pelas mãos de Isaac Karabtchevsky (o regente brasileiro
que dirige a orquestra do La
Fenice de Veneza), partilhei da
experiência mágica em que o
melômano converte-se em músico.
Há 27 anos que "Fidélio"
não era montada em São Paulo e, como a notícia foi espremida na imprensa entre shows
de "rock" e desfiles de moda,
vale a pena resgatar algumas
anotações para o leitor que deseja se presentear com o vídeo
ou o laserdisc.
Eminentemente política
(muito mais explícita do que a
maçônica e hermética "Flauta
Mágica", de Mozart), "Fidélio" é obra de um compositor
que as frustrações afetivas, a
introspecção e a surdez converteram num músico de
idéias. Por meio da linguagem
sinfônica da qual foi um dos
artífices, Beethoven
(1770-1827) fez ressoar os
ideais libertários da Revolução
Francesa.
Os exuberantes acordes iniciais da "Quinta Sinfonia"
(com a coincidência do "V"
em código morse) e o fecho
triunfal converteram-na na
"Sinfonia da Vitória" durante a Segunda Guerra Mundial.
Mesmo quando dispensa a percussão e metais, o toque beethoveniano é radiante e afirmativo. A "Nona", também
chamada de "Coral", foi escolhida como hino da nova
Europa federada. A "Terceira" é chamada de "Heróica",
e o "Concerto nº 5 para Piano" leva o nome de "Imperador".
"Fidélio", de 1805, uma das
primeiras óperas com libreto
político, 40 anos antes do militante Verdi, é um projeto feminista, antiditatorial, candente
defesa dos direitos humanos. A
mulher do prisioneiro político
que se faz passar por homem
para seduzir a filha do carcereiro e salvar o marido condenado à morte é uma trama
perfeitamente contemporânea,
que a montagem moderna trazida de Dusseldorf coloca numa atmosfera brechtiana, antinazista.
Difícil não se envolver com
esse canto em louvor à fidelidade na voz do proto-romântico. Por meio de Beethoven, fiz
a prova dos nove: ali estava
uma platéia de outros beethovens que, com maior ou menor
conhecimento de música, reviviam a sua experiência e emoções.
"A poesia é necessária", dizia Rubem Braga, na sua celebrada página de "Manchete",
anos 50. O velho Braga sabia
das coisas, cantor em prosa,
sabiá das esquinas, rei da crônica. A poesia é imperiosa e
não apenas para os poetas.
Com o idioma das ruas e as
imagens do cotidiano, pode-se
cuidar da dor-de-cotovelo ou
da condição humana. E, no
entanto, não são muitos os que
com seus versos sabem flagrar
e deflagrar a poesia recôndita
e alheia.
Carlos Vogt, paulista de Sales de Oliveira, mistura de Alsácia, Andaluzia e Itália, professor de linguística, ex-reitor
da Unicamp, é um desses poetas provocadores que nos fazem poetas. A sua veia faz saltar a nossa, mesmo quando o
leitor é versejador precário.
Seu recém-lançado "Mascarada" (editora Unicamp) junta-se ao esplêndido "Metalurgia" (Companhia das Letras,
1991) e à sua reportagem de
campo "Cafundó, a África no
Brasil" (idem, 1996), emocionante encontro com um quilombo no interior paulista.
Artesão das palavras, não
muito diferente do pai e avô
seleiros, Vogt vai esculpindo
em versos, breves ou longos,
mas sempre convocadores,
uma biografia que não é apenas sua, mas nossa. A busca do
outro começa nele mesmo, o
adolescente na foto de família
que serve de capa somos nós,
que a rija ternura dos seus versos faz aflorar.
Não é preciso ver todos os filmes, espetáculos, exposições,
ler todos os poemas, novelas,
ensaios, ouvir todas as músicas
recém-lançadas ou suscitadas.
Impossível se manter em dia
nesse mundo tão comunicado.
Na era das quantidades, menos é mais, desde que intensamente. Impregnar-se é o segredo.
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