São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 1997.




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Notas sobre arte e artistas

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

O poeta que faz de nós poetas. Arte é o que toca o destinatário e o transforma em artista. Na profusão de definições sobre a obra de arte, escolhi essa. Simples, palpável, quase pragmática. Serve como padrão avaliador, mas também como estímulo. Aplica-se a todas as manifestações artísticas e matérias afins.
Se aquele verso, melodia, imagem, emoção e experiência conseguem despertar outros versos, melodias, imagens, emoções e experiências armazenados em nosso repertório, o esforço estético ou intelectual do autor deu resultado. Caso contrário, frustrou-se.
Via de mão dupla, afinação entre dois artistas -o que faz e o que recebe-, a criação deve "bater" na sensibilidade do receptor para convertê-lo em participante ativo do processo. Se é capaz de responder na mesma onda ou vibração, deu-se o milagre, catarse.
A primeira vantagem do axioma é a sua capacidade de flexibilizar e universalizar a percepção criadora. O conceito de obra de arte passa a ser relativo ao efeito que produz num indivíduo ou público. Arte deixa de ser matéria exclusiva dos iluminados com suas elucubrações para se converter em alimento espiritual ou emocional de qualquer um apto a apreciá-la. Experiência pessoal transferida, independentemente de cânones e varinhas de condão.
O gostar ou não gostar ganha conotação funcional. Arte passa a ser a sintonia entre um processo interior e sua capacidade de extravasar e mobilizar o processo interior de outros. Artista e receptor da arte se convertem em interlocutores, partes de um diálogo, sujeitos ao imponderável das circunstâncias e ambientes. O que explica a transitoriedade dos critérios de apreciação e as montanhas de obras produzidas a cada minuto.
Quando, aos 15 anos, li "Jean Christophe", de Romain Rolland, achei-o definitivo -converteu-se em termo de referência em matéria existencial e literária. Tudo o que escrevi naquela época era puro Rolland.
Quarenta anos depois, quando achei num baú os cinco tomos da editora Globo, não consegui ultrapassar o primeiro capítulo do primeiro volume. "Jean Christophe" já não fazia soar coisa alguma, senão lembranças da primeira leitura. Mesmo que no intervalo tenha aumentado a admiração pessoal pelo autor.
Já "Hamlet", que descobri pouco antes pela mão de Laurence Olivier jamais perdeu a entonação sublime, mesmo nas "releituras" modernas.
Um dos primeiros discos de música clássica que comprei, mais ou menos à mesma época, uma daquelas "bolachas" de 78 rotações, continha duas aberturas de Beethoven. Uma delas, a famosa "Leonora", arrebatada, épica.
Achei na velha Casa Crashley, lá na rua do Ouvidor, centro do Rio, especializada em periódicos e livros ingleses, uma partitura simplificada, edição Penguin. Inesquecível sensação: o velho Ludwig conseguiu transformar o rapazola com rudimentos de solfejo em músico.
Reencontrei, inteira, a mesma sensação há dias, em São Paulo, ao ouvir pela primeira vez a íntegra de "Fidélio", a única ópera de Beethoven, da qual aquela abertura faz parte. Pelas mãos de Isaac Karabtchevsky (o regente brasileiro que dirige a orquestra do La Fenice de Veneza), partilhei da experiência mágica em que o melômano converte-se em músico.
Há 27 anos que "Fidélio" não era montada em São Paulo e, como a notícia foi espremida na imprensa entre shows de "rock" e desfiles de moda, vale a pena resgatar algumas anotações para o leitor que deseja se presentear com o vídeo ou o laserdisc.
Eminentemente política (muito mais explícita do que a maçônica e hermética "Flauta Mágica", de Mozart), "Fidélio" é obra de um compositor que as frustrações afetivas, a introspecção e a surdez converteram num músico de idéias. Por meio da linguagem sinfônica da qual foi um dos artífices, Beethoven (1770-1827) fez ressoar os ideais libertários da Revolução Francesa.
Os exuberantes acordes iniciais da "Quinta Sinfonia" (com a coincidência do "V" em código morse) e o fecho triunfal converteram-na na "Sinfonia da Vitória" durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo quando dispensa a percussão e metais, o toque beethoveniano é radiante e afirmativo. A "Nona", também chamada de "Coral", foi escolhida como hino da nova Europa federada. A "Terceira" é chamada de "Heróica", e o "Concerto nº 5 para Piano" leva o nome de "Imperador".
"Fidélio", de 1805, uma das primeiras óperas com libreto político, 40 anos antes do militante Verdi, é um projeto feminista, antiditatorial, candente defesa dos direitos humanos. A mulher do prisioneiro político que se faz passar por homem para seduzir a filha do carcereiro e salvar o marido condenado à morte é uma trama perfeitamente contemporânea, que a montagem moderna trazida de Dusseldorf coloca numa atmosfera brechtiana, antinazista.
Difícil não se envolver com esse canto em louvor à fidelidade na voz do proto-romântico. Por meio de Beethoven, fiz a prova dos nove: ali estava uma platéia de outros beethovens que, com maior ou menor conhecimento de música, reviviam a sua experiência e emoções.
"A poesia é necessária", dizia Rubem Braga, na sua celebrada página de "Manchete", anos 50. O velho Braga sabia das coisas, cantor em prosa, sabiá das esquinas, rei da crônica. A poesia é imperiosa e não apenas para os poetas. Com o idioma das ruas e as imagens do cotidiano, pode-se cuidar da dor-de-cotovelo ou da condição humana. E, no entanto, não são muitos os que com seus versos sabem flagrar e deflagrar a poesia recôndita e alheia.
Carlos Vogt, paulista de Sales de Oliveira, mistura de Alsácia, Andaluzia e Itália, professor de linguística, ex-reitor da Unicamp, é um desses poetas provocadores que nos fazem poetas. A sua veia faz saltar a nossa, mesmo quando o leitor é versejador precário. Seu recém-lançado "Mascarada" (editora Unicamp) junta-se ao esplêndido "Metalurgia" (Companhia das Letras, 1991) e à sua reportagem de campo "Cafundó, a África no Brasil" (idem, 1996), emocionante encontro com um quilombo no interior paulista.
Artesão das palavras, não muito diferente do pai e avô seleiros, Vogt vai esculpindo em versos, breves ou longos, mas sempre convocadores, uma biografia que não é apenas sua, mas nossa. A busca do outro começa nele mesmo, o adolescente na foto de família que serve de capa somos nós, que a rija ternura dos seus versos faz aflorar.
Não é preciso ver todos os filmes, espetáculos, exposições, ler todos os poemas, novelas, ensaios, ouvir todas as músicas recém-lançadas ou suscitadas. Impossível se manter em dia nesse mundo tão comunicado. Na era das quantidades, menos é mais, desde que intensamente. Impregnar-se é o segredo.



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