São Paulo, quarta-feira, 21 de janeiro de 2004

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MARCELO COELHO

Uma euforia artificial e sufocante

Achei bem esquisito o símbolo que inventaram para comemorar os 450 anos da cidade. Não é que esteja por toda parte, mas pode ser encontrado facilmente na traseira dos ônibus, e, enquanto a gente fica parado num congestionamento, sobra tempo para procurar entender sua mensagem visual.
Sobre o fundo preto, as letras S e P aparecem desenhadas num traço infantil e se juntam na parte de cima para formar um coração. O miolo desse coração é ocupado pelo número 450. A curva inferior do S e a do 5 se retorcem como uma corda ou uma cascavel, num efeito algo psicodélico. O conjunto mistura um pouco do estilo de Miró e Gaudí com o que seria a capa de um disco esquecido dos Mutantes.
A idéia também seria imitar os grafites que cobrem os muros da cidade. Mas o logotipo não se parece muito com os exemplos mais comuns dessa manifestação urbana: aquelas letras em forma de losango espalhadas por toda parte, anoréxicas, parecendo feitas só de cotovelos, seriam talvez agressivas demais para as intenções emocionais da efeméride.
Há também em São Paulo um estilo oposto de grafite, umas palavras bem gordas, de difícil leitura, em que as letras imitam almofadas infláveis ou os antigos doces de mocotó; entre o inchaço e a esqualidez, o logotipo oficial ficou no meio termo.
Sua caligrafia laboriosa lembra menos a pichação adolescente do que as tentativas ingênuas das crianças do pré-primário -o que talvez denuncie um pouco do espírito com que se tenta, afinal, comemorar a data.
Há um esforço de mobilização e de otimismo que não combina muito com a vivência que temos do cotidiano paulistano. Imagino uma sala de aula caótica, em que as crianças do fundão se esfaqueiam, cheiram cola ou engravidam, enquanto a professora, lá na frente, bate palmas, canta uma musiquinha e procura atrair a classe para a nova atividade: "mande sua mensagem de amor para São Paulo". Distribuem-se lápis de cera e seringas descartáveis.
Para quem se lembra, o símbolo do quarto centenário da cidade traduzia um clima bem diferente. Era uma espécie de clave de fá tridimensional e espiralada, que vi reproduzida em muitos lugares antes de saber que se referia ao aniversário de São Paulo. Sua forma completamente abstrata, aerodinâmica, moderna, podia aparecer em pequenos broches, em esculturas de cimento ou numa embalagem de doce -lembro-me de uns famosos "dadinhos Dizioli", feitos de massa de amendoim, baratíssimos, de que uma vez me entupi para nunca mais.
Aquele símbolo não dizia nada. Era o prenúncio de outra forma abstrata, a das colunas do Palácio da Alvorada, que também terminaram sendo imitadas em toda parte, das carrocerias de caminhão ao design de bijuterias e às fachadas de motel.
Tratava-se, sem dúvida, de representar o progresso como algo contínuo e indefinido, apontando para cima, no caso da espiral paulistana, ou para diante, no caso do friso implantado no Planalto Central.
Curiosamente, o logotipo dos 450 anos remete para trás: para a contracultura dos anos 60, para os tempos da paz e do amor. Era uma mentalidade que punha em questão a depuração estética, a frieza elegante do modernismo clássico. A linearidade branca da "era do jato", com seus palácios de mármore e seus refrigeradores imaculados, viria a ser substituída por um espírito de exuberância floral e desleixo mochileiro.
Meio sem querer, portanto, é como se o logotipo de 2004 estivesse negando a confiança de 50 anos atrás. Não faz mais sentido falar em coisas como "a cidade que mais cresce no mundo", "São Paulo não pode parar" etc. Tenho idade suficiente para me lembrar desse irritante bairrismo paulistano, em que os maiores horrores urbanos e sociais eram enaltecidos como fruto legítimo do pioneirismo da raça bandeirante.
Era absurdo; mas é desse absurdo que se fazem as celebrações oficiais. Iludidos ou não, os paulistanos talvez tenham comemorado o quarto centenário como algo de que se orgulhassem. A cidade de hoje não é motivo de orgulho para ninguém. A data serve apenas como acontecimento de mídia e como mecanismo de promoção para a prefeitura.
O frenesi industrial da década de 50, a trepidação, o calor daquele tempo submetiam-se, no símbolo do quarto centenário, a um processo de estilização, a uma espécie de "resfriamento" simbólico.
Hoje, pretende-se aquecer a todo custo uma efeméride que não tem como mobilizar a população; o "look" dos 450 anos não traduz mais que uma euforia artificial e sufocante. Dentro de um carro oficial, alguma autoridade ouve John Lennon e tenta hipnotizar-se a si mesma recitando, como uma mandala, os números da arrecadação da taxa do lixo, os empréstimos que receberá do governo federal e os índices da última pesquisa de intenções de voto. Conclui, solenemente, que o sonho não acabou.
 
Duas correções. No artigo da semana passada, escrevi que "Kitty Hawk" era o nome do invento dos irmãos Wright. Na verdade, o artefato chamava-se "Flyer". Kitty Hawk é a localidade onde ocorreu o experimento. Em outro artigo, escrevi a palavra "borocochô". Custo a me convencer, mas o certo é com x.


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