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MARCELO COELHO
Uma euforia artificial e sufocante
Achei bem esquisito o símbolo que inventaram para
comemorar os 450 anos da cidade. Não é que esteja por toda parte, mas pode ser encontrado facilmente na traseira dos ônibus, e,
enquanto a gente fica parado
num congestionamento, sobra
tempo para procurar entender
sua mensagem visual.
Sobre o fundo preto, as letras S e
P aparecem desenhadas num traço infantil e se juntam na parte de
cima para formar um coração. O
miolo desse coração é ocupado
pelo número 450. A curva inferior
do S e a do 5 se retorcem como
uma corda ou uma cascavel, num
efeito algo psicodélico. O conjunto
mistura um pouco do estilo de
Miró e Gaudí com o que seria a
capa de um disco esquecido dos
Mutantes.
A idéia também seria imitar os
grafites que cobrem os muros da
cidade. Mas o logotipo não se parece muito com os exemplos mais
comuns dessa manifestação urbana: aquelas letras em forma de
losango espalhadas por toda parte, anoréxicas, parecendo feitas só
de cotovelos, seriam talvez agressivas demais para as intenções
emocionais da efeméride.
Há também em São Paulo um
estilo oposto de grafite, umas palavras bem gordas, de difícil leitura, em que as letras imitam almofadas infláveis ou os antigos doces
de mocotó; entre o inchaço e a esqualidez, o logotipo oficial ficou
no meio termo.
Sua caligrafia laboriosa lembra
menos a pichação adolescente do
que as tentativas ingênuas das
crianças do pré-primário -o que
talvez denuncie um pouco do espírito com que se tenta, afinal, comemorar a data.
Há um esforço de mobilização e
de otimismo que não combina
muito com a vivência que temos
do cotidiano paulistano. Imagino
uma sala de aula caótica, em que
as crianças do fundão se esfaqueiam, cheiram cola ou engravidam, enquanto a professora, lá
na frente, bate palmas, canta
uma musiquinha e procura atrair
a classe para a nova atividade:
"mande sua mensagem de amor
para São Paulo". Distribuem-se
lápis de cera e seringas descartáveis.
Para quem se lembra, o símbolo
do quarto centenário da cidade
traduzia um clima bem diferente.
Era uma espécie de clave de fá tridimensional e espiralada, que vi
reproduzida em muitos lugares
antes de saber que se referia ao
aniversário de São Paulo. Sua forma completamente abstrata, aerodinâmica, moderna, podia
aparecer em pequenos broches,
em esculturas de cimento ou numa embalagem de doce -lembro-me de uns famosos "dadinhos
Dizioli", feitos de massa de amendoim, baratíssimos, de que uma
vez me entupi para nunca mais.
Aquele símbolo não dizia nada.
Era o prenúncio de outra forma
abstrata, a das colunas do Palácio
da Alvorada, que também terminaram sendo imitadas em toda
parte, das carrocerias de caminhão ao design de bijuterias e às
fachadas de motel.
Tratava-se, sem dúvida, de representar o progresso como algo
contínuo e indefinido, apontando
para cima, no caso da espiral
paulistana, ou para diante, no caso do friso implantado no Planalto Central.
Curiosamente, o logotipo dos
450 anos remete para trás: para a
contracultura dos anos 60, para
os tempos da paz e do amor. Era
uma mentalidade que punha em
questão a depuração estética, a
frieza elegante do modernismo
clássico. A linearidade branca da
"era do jato", com seus palácios
de mármore e seus refrigeradores
imaculados, viria a ser substituída por um espírito de exuberância floral e desleixo mochileiro.
Meio sem querer, portanto, é como se o logotipo de 2004 estivesse
negando a confiança de 50 anos
atrás. Não faz mais sentido falar
em coisas como "a cidade que
mais cresce no mundo", "São
Paulo não pode parar" etc. Tenho
idade suficiente para me lembrar
desse irritante bairrismo paulistano, em que os maiores horrores
urbanos e sociais eram enaltecidos como fruto legítimo do pioneirismo da raça bandeirante.
Era absurdo; mas é desse absurdo que se fazem as celebrações
oficiais. Iludidos ou não, os paulistanos talvez tenham comemorado o quarto centenário como
algo de que se orgulhassem. A cidade de hoje não é motivo de orgulho para ninguém. A data serve
apenas como acontecimento de
mídia e como mecanismo de promoção para a prefeitura.
O frenesi industrial da década
de 50, a trepidação, o calor daquele tempo submetiam-se, no
símbolo do quarto centenário, a
um processo de estilização, a uma
espécie de "resfriamento" simbólico.
Hoje, pretende-se aquecer a todo custo uma efeméride que não
tem como mobilizar a população;
o "look" dos 450 anos não traduz
mais que uma euforia artificial e
sufocante. Dentro de um carro
oficial, alguma autoridade ouve
John Lennon e tenta hipnotizar-se a si mesma recitando, como
uma mandala, os números da arrecadação da taxa do lixo, os empréstimos que receberá do governo federal e os índices da última
pesquisa de intenções de voto.
Conclui, solenemente, que o sonho não acabou.
Duas correções. No artigo da semana passada, escrevi que "Kitty
Hawk" era o nome do invento dos
irmãos Wright. Na verdade, o artefato chamava-se "Flyer". Kitty
Hawk é a localidade onde ocorreu
o experimento. Em outro artigo,
escrevi a palavra "borocochô".
Custo a me convencer, mas o certo é com x.
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