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DRAUZIO VARELLA
Feliz aniversário
Tio Amador, hoje com 86
anos, disputou na juventude
campeonato de natação no rio
Tietê. Eu nasci, durante a Segunda Guerra Mundial, no Brás,
bairro povoado por tantos italianos, portugueses e espanhóis que
quando mudamos da rua Rio Bonito para a Henrique Dias a vizinhança comentava: "mudaram-se uns brasileiros". Não era bem
verdade, meu pai nasceu durante
uma viagem de meus avós à Espanha tornada involuntariamente longa pela eclosão da Primeira
Guerra Mundial, mas havia sido
registrado no Brasil por meios
provavelmente ilegais naquele
tempo, porque meu avô quis evitar a qualquer preço que o filho
fosse cidadão espanhol.
No início do século 20, esse avô
chegou em São Paulo aos 12 anos
de idade, sozinho, com a obrigação de ganhar a vida para sustentar a mãe viúva e cinco irmãos
menores, na Galícia. Na cidade
que se industrializava, trabalhou
duro no transporte de mercadorias em carroças, casou e constituiu família. Ficou tão agradecido ao país e à cidade que o acolheu, que proibia minha avó de
falar espanhol com os filhos de
medo que um dia eles cismassem
de ir embora para a Espanha.
Evito contar para as crianças de
hoje que aos seis anos eu saía escondido com os amigos da Henrique Dias pelas ruas e terrenos baldios que levavam ao campo do
São Paulo, no Canindé, na área
em que hoje fica o estádio da Portuguesa, para não imaginarem
que fui contemporâneo do padre
Anchieta. Passávamos pelo campo do Serra Morena, parávamos
fascinados diante do enorme distintivo tricolor na sede do querido
São Paulo, e seguíamos por uma
picada no mato até a beirada do
Tietê (onde seria construída a
Marginal) para pescar peixinhos
com uma lata de cera Parquetina
furada feito peneira.
Nos dias quentes, os homens
chegavam das fábricas, jantavam
e colocavam as cadeiras na calçada para contar histórias do frio e
da fome que passavam nas aldeias onde nasceram, e de como
Mussolini foi pendurado de cabeça para baixo num posto de gasolina. As casas eram acanhadas, de
cômodos em sua maioria, e a molecada passava o dia solta, só entrava para as refeições e na hora
de se recolher à noite. Não se ouvia falar em drogas, e os bandidos
da cidade eram conhecidos pelo
nome: Sete Dedos, Meneghetti,
Promessinha.
Essa visão idílica de São Paulo
com menos de 2 milhões de habitantes, lembrada com nostalgia
pela tranqüilidade e pelo romantismo dos bondes, é conseqüência
da mais traiçoeira característica
da memória humana: a de apagar as lembranças dolorosas.
Aos seis anos acordei com os
olhos inchados, e meu pai me levou ao médico: foi minha primeira visita a um pediatra; só os filhos dos mais ricos gozavam desse
privilégio. No final dos anos 60,
quando fiz internato no Hospital
das Clínicas, ao tirarmos a história das pacientes a primeira pergunta era quantos filhos haviam
tido; a segunda, quantos estavam
vivos. Havia uma enfermaria só
para crianças desnutridas. Em
cada plantão do pronto-socorro
de pediatria, morriam cinco ou
seis crianças com diarréia, desidratação, pneumonia, sarampo,
difteria e até paralisia infantil. A
cidade pacata, sem trânsito, ávida de mão-de-obra barata, não
conseguia organizar serviços de
saúde nem infra-estrutura de habitação e saneamento básico na
velocidade necessária para receber as levas de imigrantes nordestinos, que inchavam a periferia
atrás de uma vida mais digna.
Em sua ânsia de progresso, São
Paulo cresceu verticalmente para
absorver e considerar paulistas
todos que estivessem dispostos a
trabalhar com vontade, seguindo
nossa vocação cosmopolita de
não lhes perguntar de onde vinham. Quatrocentos e cinqüenta
anos depois de sua fundação, nossa região metropolitana chega
aos 18 milhões de habitantes, produz 15% das riquezas do país
(perde apenas para o Estado de
São Paulo), e constitui o maior
centro financeiro da América Latina.
A população aumentou pelo
menos nove vezes desde quando
eu era criança, e os problemas se
multiplicaram: faltam empregos,
transporte coletivo, escolas, postos
de saúde, habitações, espaços para lazer, segurança nas ruas, cadeias, passamos horas engarrafados no caminho para casa, mas
pouquíssimos emigram ou retornam para suas origens. Parece
que a cidade fica impregnada na
alma de seus habitantes com tal
intensidade, que eles não se adaptam mais a lugar nenhum.
Não me surpreendem nossos
problemas, o que acho estranho é
como a cidade ainda funciona de
modo que os serviços aqui disponíveis não encontram paralelo no
Brasil. O que aconteceria com
Londres, Paris e Nova York se tivessem multiplicado por dez suas
populações no intervalo de uma
única geração?
Pessoalmente, guardo lembranças maravilhosas, mas não tenho
saudades de São Paulo provinciana, em que as crianças não conheciam médico nem recebiam
vacinas, esgoto e água tratada
eram luxo, e quando pobre comia
frango o povo dizia que um dos
dois estava doente. Estou muito
mais interessado nos desafios para integrarmos essa massa de
crianças em escolas de boa qualidade para lhes dar oportunidades
idênticas às dos filhos da classe
média, em reduzir o número de
gestações não-desejadas que atormentam a população de baixa
renda por falta de acesso aos métodos contracepcionais, em encontrar caminhos para cuidarmos da saúde pública e oferecermos trabalho digno para os jovens antes que os traficantes o façam.
Muitos acham São Paulo feia,
caótica, perigosa, poluída. Talvez
seja, mas quantas cidades no
mundo reúnem tamanha diversidade cultural, tanta gente dedicada ao trabalho criativo, tanta inteligência concentrada?
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