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CONTARDO CALLIGARIS
Sequestros: uma imagem de nosso arcaísmo
Domingo à noite, caminhava na Paulista. Na frente do
Masp, um homem se colocou no
meu caminho e me forçou a parar, abrindo os braços como um
defensor num jogo de basquete.
Enfim, com a língua presa e um
tom de bêbado, pediu-me a hora.
Pensei num instante: melhor assim, ele quer apenas meu relógio.
Ou vai ver que é um truque:
quando eu baixar os olhos para
meu pulso, aparecerá um cúmplice armado. Respondi, então, sem
consultar o relógio: "11 horas".
Ele me agradeceu e foi embora,
comentando que, de qualquer
forma, naquela noite, ele não ia
voltar para casa, porque as mulheres e os filhos... As palavras se
perderam na distância.
O alívio inicial durou pouco.
Logo senti uma irritação revoltada. Em tempos ou lugares diferentes, eu mesmo teria começado
um papo. Talvez propusesse a
meu interlocutor que nos sentássemos juntos no meio-fio da calçada e que ele me explicasse direito o que as mulheres e os filhos
querem da gente.
Pode ser que, por sorte, eu não
seja nunca sequestrado ou assaltado. Tanto faz, pois já estou sendo roubado: a suspeita e a desconfiança permanentes me privam da possibilidade de escutar
um desconhecido. Seja ele um
menino que oferece chiclete, um
homem que vende flores, um
mendigo ou, simplesmente, um
cara perdido que pergunta a hora. Era só o que nos faltava: essa
paranóia forçada sobrepõe-se a
desigualdades que já são monstruosas e consegue aumentar ainda mais a distância social.
Raiva e frustração. A vontade é
grande de encontrar e chutar de
vez o pau que sustentaria toda essa barraca de sequestros, violência e injustiça social.
Deve ser por isso que, na pressa
destes dias, a economia de mercado, o liberalismo ou o neoliberalismo são acusados de serem a
causa de todos os nossos males.
Na Folha de 2 de fevereiro, por
exemplo, Marilene Felinto via a
onda de sequestros que assola São
Paulo como uma espécie de triunfo do mercantilismo. Teríamos,
em suma, os criminosos que a
modernidade merece.
Simpatizo com a indignação,
mas a idéia não cola muito bem,
pois o sequestro não é uma invenção liberal. Seu protótipo é uma
atividade própria de economias
pré-modernas: a captura de escravos. Na África, assim como na
bacia do Mediterrâneo, durante
muitos séculos, foi praxe econômica capturar o vizinho e vendê-lo a um terceiro ou, então, negociar o valor de um resgate, no caso
em que a família do cativo tivesse
posses. O pagamento de um sequestro tem mais a ver com uma
alforria do que com o preço de
uma mercadoria. O sequestro, em
suma, não é o corolário nefasto e
exemplar da economia de mercado. Ao contrário, ele é um arcaísmo, um resto de antigas formas
de domínio que nossa sociedade
praticou durante séculos e às
quais ela não sabe renunciar.
Vivemos uma contradição
constante entre nossas aspirações
modernas e a vontade de preservar uma ordem social de privilégios garantidos. Queremos viver
num shopping center, mas, ao
mesmo tempo, desejamos também manter ativas e separadas as
senzalas e as casas-grandes.
Nossos criminosos vivem a mesma contradição. De acordo com a
economia de mercado, eles procuram riquezas, mas o estilo de seus
atos criminosos revela outra prioridade: dominar a vítima, submeter seu corpo, é tão importante
quanto apoderar-se de seus bens.
Nossos ladrões de residências esperam que o dono esteja em casa
e escolhem assaltar com violência, enquanto poderiam, discretamente, visitar apenas casas desertas. Do mesmo jeito, nossos ladrões de carro se interessam pouco por carros estacionados; eles
preferem arrancar o motorista de
seu lugar. Furtar não está com
nada, roubar é que é bom. O sequestro é o auge e a solução dessa
contradição: sequestrando, é possível ganhar um dinheiro e, ao
mesmo tempo, gozar de um poder
absoluto sobre o corpo da vítima.
A economia de mercado inventou um mundo em que a diferença social pode ser organizada pela
distribuição (variável) de bens e
riquezas. Em princípio, nós nos
distinguimos pelas posses ou pelo
consumo, não por privilégios de
nascença e ainda menos pela força. Ora, a prática do sequestro expressa a nostalgia de um mundo
pré-moderno, em que a captura é
a verdadeira afirmação de supremacia. Não é preciso comparar
marcas de carro, casas na praia
ou qualidades dos vinhos que tomamos: quem se deixa prender
está por baixo.
Claro, a estética do mercado é
cafona, kitsch. E sua ética é pouco
heróica. Afirmar-se esbanjando
consumo é menos dramático do
que enfrentar a rua de arma ou
espada na mão. Claro, o desejo de
ter mais bugiganga do que meu
vizinho não é uma fantasia muito
nobre. Querer esmagá-lo de inveja é mesquinho, mas talvez seja
mais civilizado do que esmagar
seu corpo a marteladas ou prendê-lo num cubículo.
Em suma, vivemos um conúbio
estranho entre nossos sonhos liberais de consumo e nossa nostalgia
de um passado escravagista. Nossos criminosos, já disse, vivem o
mesmo conúbio: gostam de sequestrar porque, em nossa cultura, parece que enriquecer é um
prazer, mas dominar é um prazer
maior.
ccalligari@uol.com.br
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